Supremo Tribunal Federal (STF)

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Nélson HUNGRIA

"Ciência penal não é só interpretação hierática da lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação de seu espírito e a compreensão de seu escopo para ajustá-lo a fatos humanos, a almas humanas, a episódios do espetáculo dramático da vida." (Hungria)

sábado, 30 de julho de 2011

Nova lei de prisões cautelares é positiva

Para especialistas, nova lei de prisões cautelares é positiva, mas impõe desafios de fiscalização

As novas regras de prisão cautelar foram recebidas por parte da mídia com terror. Dezenas de milhares de presos perigosos seriam postos, do dia para a noite, em liberdade, colocando em risco as pessoas de bem. Será que há tal risco? Ou a lei é positiva? Para esclarecer o assunto, o STJ ouviu especialistas em Direito Penal e criminologia sobre a nova Lei de Prisões Cautelares, como vem sendo conhecida a Lei 12.403/2011, que alterou dispositivos do Código de Processo Penal (CPP). As alterações estão bem claras no quadro comparativo entre as duas redações do CPP elaborado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

Elogios

A possibilidade de aplicação de medidas alternativas à prisão antes da condenação é vista de forma positiva por todos os especialistas ouvidos. Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, as medidas são polêmicas, mas necessárias. “As modificações são bem-vindas e eram necessárias. O aumento do leque de medidas cautelares possíveis é positivo. Antes, o juiz se via numa sinuca: ou decretava a prisão provisória ou preventiva, ou deixava o réu solto. Agora, ele pode não aplicar a prisão provisória ou preventiva e também não deixar o réu sem qualquer medida penal”, afirma.

A pesquisadora do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim), vinculado à Universidade de Brasília, e professora de Direito Penal e Processual Penal Carolina Costa Ferreira, aponta que a lei resolve uma contradição. Antes, era comum manter réus presos cautelarmente por tempo superior ao da condenação final. “Muitas vezes havia a prisão provisória por dois, três anos, e a sentença condenatória vinha para um ano e dois meses convertendo em pena alternativa. Ou seja, aquela pessoa não precisava estar ali. Enquanto ela passou dois, três anos, na prisão, aprendeu outras formas de delinquir muito piores”, observa.

A opinião é reforçada também pelo juiz paulista Guilherme de Souza Nucci, que atua como desembargador no TJSP: “Medidas céleres colaboram com a Justiça célere, algo que toda a sociedade deseja. Sejam gravosas ou não, o ponto fundamental é que tenham efetividade. As modificações são positivas. Conferem maior flexibilidade para a atuação do magistrado, possibilitando a aplicação de várias medidas alternativas, evitando-se a inserção do acusado no cárcere.” Para ele, um dos destaques é a recomposição do valor da fiança, que a torna efetivamente aplicável.

O procurador regional da República Wellington Cabral Saraiva, indicado pela Procuradoria Geral da República (PGR) para representar o Ministério Público da União (MPU) no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), também concorda com os aspectos positivos da lei, como a maior flexibilidade dada ao juiz.

Mas ele ressalva que há riscos concretos de manter em liberdade acusados que, em sua opinião, deveriam aguardar presos. “Alguns acusados de crimes importantes, como receptação e formação de quadrilha, não poderão ser, em princípio, presos, porque a pena máxima não permite a prisão. A percepção de ineficiência do sistema judiciário pela sociedade pode aumentar”, afirmou.

Fiscalização

Para o procurador, a lei falha ao não dar condições de fiscalização das medidas alternativas. “A estrutura de fiscalização é inexistente. A proibição de frequência a determinados lugares, por exemplo, pode ser inócua”, alerta. “O Estado brasileiro não tem condições de fiscalizar o cumprimento de algumas dessas medidas”, completa. Para ele, deveria ter havido um prazo maior para sua entrada em vigor, entre um e dois anos, permitindo ao Judiciário se organizar administrativamente para observar o cumprimento das medidas.

Mas Saraiva pondera que as prisões podem ser também um problema. “As deficiências das prisões são um dos defeitos mais graves do nosso sistema criminal. As prisões são em número insuficiente e alguns estabelecimentos prisionais são absolutamente desumanos e indignos. Essas prisões se tornam fatores criminógenos. O que se deveria fazer é investir em dar ocupação e formação aos presos, para evitar a reincidência”, afirma.

A falta de fiscalização também é o maior risco da lei na opinião do ministro Dipp: “Duvido muito que no Brasil, com as carências que temos de magistrados, do Ministério Público (MP), de servidores do Judiciário, de polícia – que já não cumpre nem seu papel primordial e ainda vai ter que fiscalizar uma série de outras medidas –, a lei será bem cumprida.” Segundo ele, “não adianta ter medidas boas, modernas, protetivas dos direitos fundamentais, se não houver uma efetiva fiscalização da aplicação dessas medidas”.

“Essas medidas precisam de um mínimo de fiscalização”, completa. “Quem é que vai fiscalizar adequadamente, nessa imensidão do Brasil, se alguém que teve como medida cautelar a imposição de se recolher em período noturno, ou se aproximar de uma determinada pessoa, está cumprindo a medida?”, questiona o ministro.

Para Carolina Ferreira, que também é coordenadora do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência da República, o Executivo terá disposição e condição de aplicar as medidas previstas. “A política de segurança pública está voltada para a política de segurança cidadã. A política de evitar, cada vez mais, a prisão como forma de retribuição é complementar dessa política de segurança pública”, explica. “Quase todos os países um pouco mais desenvolvidos ou países que querem solucionar o problema da violência têm incluído mais medidas ‘desencarceradoras’ em seu ordenamento”, acrescenta.

“A intenção é essa: incluir cada vez mais medidas de política criminal que diminuam o acesso à prisão, mas não necessariamente diminuam o controle penal. Elas requerem o controle da polícia, controle do próprio Judiciário, no comparecimento diário, no monitoramento eletrônico. Há uma série de medidas que, na verdade, não colocam todo mundo em liberdade e sim aumentam o controle penal, mas pensando na prisão de fato como última possibilidade”, avalia a mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

Curiosamente, Nucci, que é um conhecido crítico da função inócua de algumas medidas alternativas como forma de condenação, após o processo, não vê a mesma inutilidade em seu uso cautelar. “Como pena definitiva, acho, de fato, uma inócua sanção a proibição de frequentar lugares. Porém, como singela medida cautelar, pode ser útil, afinal, o réu fará tudo para cumpri-la, evitando ser preso”, afirma o doutrinador. “Lembremos que o temor do cárcere é muito maior no espírito do acusado do que no condenado. Um tem a esperança de ser absolvido; o outro já está condenado”, sustenta.

“Quanto às novas medidas, somente o tempo dirá se elas serão eficientes. O ponto relevante é o Executivo proporcionar os meios cabíveis para executar as medidas alternativas, como o monitoramento eletrônico. Sem recursos financeiros, nada será eficaz”, acredita o magistrado paulista.

Credibilidade do sistema judicial

O fato de a lei ser mais branda em relação ao acusado pode favorecer a idéia de que “a polícia prende e a Justiça solta” e afetar a credibilidade do sistema judicial? Não, na opinião de nossos entrevistados.

“Estranho seria a polícia soltando e o juiz prendendo”, contrapõe Nucci. “A função da polícia é mesmo prender, mormente quando em flagrante delito. E a função do juiz, de lastro constitucional, é averiguar a prisão realizada e promover a medida legalmente cabível. Se tiver que manter a prisão, deve fazê-lo. Se for o caso de soltar, cumpra-se a lei”, argumenta.

“Há uma atenção exagerada da sociedade e da imprensa ao papel da polícia. A sociedade se esquece de que ela é só a primeira fase do sistema penal. A polícia deve investigar, o MP denunciar e o Judiciário julgar. A polícia é uma peça, não tem sentido sozinha”, afirma o procurador Wellington Saraiva. “O cidadão deve ter a clara noção de que polícia é uma coisa e juiz é outra. Faz parte dos sistemas que um prenda e outro solte”, acrescenta, na mesma linha, Guilherme Nucci.

“Não é a gravidade da lei que atemoriza o criminoso, mas a sensação de impunidade é que o autoriza a agir contra a lei”, avalia o ministro Gilson Dipp. “Como a lei é mais benéfica, gera a percepção de que o Judiciário brasileiro é benevolente com os criminosos. Mas não é porque queira, é porque a legislação brasileira determina. A benevolência é da lei”, completa.

“Muitos veículos da mídia disseram que 200 mil presos seriam colocados em liberdade. Não é verdade”, adverte a pesquisadora Carolina Ferreira. “Nós temos 200 mil presos provisoriamente, mas não temos dados suficientes para dizer que todos esses respondem por crimes com pena de até quatro anos de prisão. Muitas vezes eles já são reincidentes, ou já estão cumprindo pena por concurso ou estão respondendo a processos em concurso, como furto com formação de quadrilha, o que aumenta a pena teórica para além de quatro anos. Esses já não terão direito a essas medidas cautelares alternativas”, explica a professora.

“O apelo da mídia foi totalmente desproporcional ao objetivo da lei, que vem complementar todo o sistema de penas alternativas que já estamos criando desde 1998, com a Lei 9.714”, critica. “A prisão cautelar continua sendo autorizada. Na verdade, a Lei 12.403 impõe as medidas cautelares para crimes cujas penas não chegam a quatro anos. Nos outros, ela deixa a critério do juiz”, elucida Ferreira.

“Para mim, a nova lei não trará modificações profundas no sistema carcerário”, corrobora Nucci. “É impossível que réus perigosos sejam colocados em liberdade por conta da nova lei, afinal, a prisão preventiva resta intocada. Toda vez que surge alguma lei, trazendo benefícios ao acusado, cria-se uma aura de especulação em torno do caos. Mito puro. Quem merece continuará na cadeia. Outros, no entanto, terão oportunidades diferentes, evitando-se o cárcere indevido”, assevera o doutrinador.

Direitos, superlotação e Judiciário

“Essa lei tem o cunho de atender o direito fundamental do indivíduo, mas também um viés que é suprir uma deficiência que não é da lei penal ou do sistema judiciário. Ela veio tentar suprir uma deficiência do Executivo: não construir prisões. Parece que estamos reconhecendo a inépcia, a falta de vontade política e de recursos do Poder Executivo em criar presídios, casas de albergados e para crianças e adolescentes infratores”, afirma o ministro Dipp.

“A lei deve desafogar o sistema carcerário, mas não o Judiciário. A prisão vai ser uma raríssima exceção, mas as medidas cautelares podem não satisfazer aqueles a quem forem aplicadas, o que fará haver uma procura pelo Judiciário, como sempre se faz, através do habeas corpus”, acredita o ministro.

Segundo Nucci, a única medida cabível contra a aplicação de uma medida cautelar é o habeas corpus. “A prisão em flagrante, hoje, dura 24 horas. A partir daí, torna-se preventiva. E nesse caso respeita-se o princípio da razoabilidade, ou seja, não há prazo certo para findar. Cada caso é um caso. Se os juízes seguirem fielmente a nova lei, creio que o número de habeas corpus cairá”, avalia.

Para Carolina Ferreira, que pesquisou especificamente a efetividade das penas alternativas no Distrito Federal entre 1998 e 2005, a substituição da prisão é eficaz. “A lei tutela direitos e garantias, especificamente em relação à proporcionalidade da pena. O público-alvo dessa lei são os acusados de crimes com pena de até quatro anos de prisão que depois de condenados já teriam direito a uma pena alternativa. Em nossa pesquisa, chegamos à conclusão de que para quem foi aplicada uma pena substitutiva, o índice de reincidência foi muito menor”, aponta.

“O Poder Legislativo não está errado em entender que devemos aplicar outras medidas menos gravosas que a prisão, afinal a atual situação do nosso sistema penitenciário é inconcebível. O que é necessário fazer agora é fiscalizar”, completa a pesquisadora.

Jurisprudência em habeas corpus

Em um tópico relacionado, o ministro Gilson Dipp criticou a formação da jurisprudência penal brasileira sobre habeas corpus. “O habeas corpus hoje é usado como remédio para todos os males penais. Isso não é uma crítica ao instituto, pelo contrário. O habeas corpus é um direito constitucional fundamental ao cidadão e que deve sempre ser preservado”, ressalva.

“Mas os tribunais abriram demais as possibilidades de uso do habeas corpus, até que fosse substituto de todos os recursos processuais cabíveis no nosso sistema. Hoje o habeas corpus serve para substituir até o recurso especial e o extraordinário”, critica.

A opinião é respaldada pelo procurador regional Wellington Saraiva: “A formação de jurisprudência penal em habeas corpus é um dos principais temas que precisam ser debatidos sobre o sistema judiciário brasileiro. A amplitude dada pelos tribunais superiores ao cabimento do habeas corpus é um importante fator de ineficiência do sistema.”

“O recurso especial é o meio vocacionado para fazer a devida aplicação da lei federal, uniformizá-la e formar nossa jurisprudência penal. Onde nós estamos formando nossa jurisprudência penal? Em recurso especial, que é o vocacionado, que tem o contraditório, a paridade de armas? Ou em habeas corpus, decorrente de um caso concreto? Quase toda nossa jurisprudência decorre de habeas corpus”, diagnostica Dipp. “O habeas corpus, por suas características de celeridade e informalidade, muitas vezes não se presta para formar doutrina e tese jurídica”, avalia o ministro.

“O habeas corpus é usado para subverter as regras e a lógica orgânica do sistema recursal”, afirma Wellington Saraiva. “Um exemplo significativo é um advogado que pode levar em poucos dias ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma decisão de recebimento de denúncia por um juiz de qualquer comarca do Brasil. Usando de habeas corpus sucessivos contra decisões que negam liminares, em duas semanas o recebimento da denúncia passa do juiz ao Supremo. Isso elimina o contraditório recursal, coloca o MP em posição de inferioridade e prejudica a análise das questões jurídicas pelos tribunais superiores, que decidem com autos incompletos”, argumenta.

Guilherme Nucci discorda. “O habeas corpus tem, sim, contraditório por parte do MP. Há sempre parecer do MP, que, invariavelmente, atua em nome da sociedade. Diz-se que o faz como fiscal da lei, porém a realidade demonstra o contrário”, avalia o magistrado, com base em pesquisa desenvolvida por si mesmo.

Mas o ministro Dipp aponta outro indício do uso desmedido do instituto: o crescimento do número de recursos extraordinários contra decisões concessivas de habeas corpus. “Como o habeas corpus é usado para tudo, em caso de concessão, ao MP cabe apenas recorrer extraordinariamente ao Supremo, não tem outro caminho a não ser esse. E por que o MP está usando o recurso extraordinário? Porque nesses habeas corpus não se está definindo a questão apenas em relação à parte interessada, mas a própria tese jurídica. Exatamente pelo desvirtuamento do habeas corpus, que está fazendo jurisprudência em cima de sua celeridade, o MP tem verificado essa distorção e recorrido, mas dentro do meio adequado, que é o recurso extraordinário”, conclui.

Fonte: STJ

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Um segundo olhar sobre o regime das prisões em flagrante



Ainda em relação à postagem anterior, fiz algumas reflexões e resolvi me reposicionar a respeito da questão que envolve o art. 310 do CPP.

Continuo muito à vontade em relação à concessão da liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares diversas da prisão, no momento do flagrante, independentemente de parecer do Ministério Público. E por várias razões: a) presunção de inocência – que reflete na prisão durante o processo como exceção e a liberdade como regra (muito embora a prática revele uma inversão perversa); b) princípio do favor rei – que impõe uma interpretação favorável ao acusado, das normas penais e processuais penais; c) pela exigência constitucional do art. 5º LXVI da CR, de que a prisão em flagrante não deva perdurar por tempo excessivo (“ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”); d) pela postura de isenção e distanciamento do interesse das partes, exigida do juiz no sistema acusatório.

Sempre combati a ideia, antes da alteração legislativa, da continuidade da prisão em flagrante durante tempo relevante. Sempre fazia vista ao Ministério público, nos termos do antigo parágrafo único do CPP, que assim rezava:

Parágrafo único. Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (artigos 311 e 312).

Após o retorno dos autos, eu ou concedia a liberdade provisória ou decretava a prisão preventiva. Mas nunca de ofício. Se o Ministério Público, titular da ação penal, opinasse pela concessão da liberdade provisória, eu a concedia, como sempre absolvi o acusado quando o Ministério Público assim pedia (pois não pode o juiz assumir o papel de acusador no lugar de quem de direito).

Também me preocupa a criação de ritos diversos do que determina a lei. O juiz não é legislador. E mantenho a crítica que fiz nos últimos parágrafos à postura solipsista de uma pequena parcela dos atores jurídicos.

Contudo, a questão da conversão em preventiva, com a amplitude dada pelo art. 310 do CPP, ainda estava me incomodando. Como já salientei na postagem anterior, entendo que a prisão em flagrante não possa perdurar por tempo relevante após o recebimento, pelo juiz, da cópia do auto, e que a liberdade provisória deva ser concedida sempre que o magistrado entender, rebus sic stamtibus, presente seus elementos constitutivos. Mas em se tratando de prisão preventiva, não há exigência constitucional de sua conversão imediata. Nesse ponto, da forma com que a lei 12.403/2011 redefine a postura do juiz ao receber o flagrante, o faz de modo a ferir o sistema acusatório. Reconheço isso agora, sem nenhum problema. Isso porque impõe ao magistrado, caso não se convença do relaxamento, da concessão de liberdade provisória ou da adoção de medidas diversas da prisão, a conversão em prisão preventiva. O juiz não pode virar parte.

Assim, nas situações nebulosas, na zona cinzenta entre a concessão da liberdade provisória e a ocorrência da prisão preventiva, um prazo de 24 horas seria suficiente para não prolongar em demasia a prisão em flagrante, ao passo que permitiria ao Órgão Ministerial cumprir seu mister de titular da ação penal. É bem verdade que não há essa previsão na lei, mas é o preço a pagar para resguardar a postura do magistrado dentro do sistema acusatório.

Aproveito para agradecer e transcrever a opinião de dois leitores do blog, Tiago Pacheco e Gustavo Cavalcante, que debateram com propriedade sobre o tema, no próprio post anterior.

O primeiro disse o seguinte:
“Quando a CF/88 fala que a prisão ilegal será imediatamente relaxada, refere-se a relaxamento de prisão, completamente diferente de liberdade provisória.

Uma prisão ilegal, sem dúvida, deve ser de logo relaxada, sem que o magistrado espere por ninguém. Mas para concessão de liberadade provisória, medida de contra-cautela e que não tem relação com ilegalidade da prisão, ou para seja decretada a prisão preventiva, deve, sim, o magistrado aguardar o pronunciamento do MP.

Acho até possível entender que, quanto a liberdade provisória, poderia o magistrado concedê-la ex-officio, em razão do princípio do "favor rei" (não confundir com princípio da inocência). Contudo, para decretar a preventiva ou até para converter o flagrante em preventiva, só se houver pedido do MP.”
O segundo:
“só haveria a obrigatoriedade/necessidade do parecer ministerial nos casos em que o juiz, ao se deparar com o Auto de prisão em flagrante, ficar convencido, mesmo que de forma esfumaçada, pela conversão para prisão preventiva. Já nos casos que o relaxamento for a primeira opinião do juiz, não haveria a obrigatoriedade(porém poderia ser necessário). Utilizando o princípio do favor rei, muito bem apontado pelo caro colega”
Por essas razões, em parte me reposiciono.
A partir de agora, buscarei agir da seguinte maneira:

a) Vislumbrando, de plano, que se trata de situação em que cabe liberdade provisória: a1), objetivamente, como, por exemplo, quando sequer pode haver a decretação da prisão preventiva (réu primário e com identidade definida, em crime cuja pena não ultrapassa quatro anos, não sendo de violência doméstica); a2) ou subjetivamente, (réu primário e com identidade definida, em crime cuja pena ultrapassa quatro anos, mas me convencendo de que não existem os requisitos ou qualquer dos fundamentos da prisão preventiva, ou que medidas cautelares diversas da prisão seriam adequadas e suficientes para substituir eventual decretação de prisão preventiva), desde já concederei liberdade provisória, com ou sem medidas;

b) Todavia, nas hipóteses que remanescerem, que se situarem numa zona e penumbra entre a suficiência ou não das medidas cautelares diversas da prisão, aguardarei por 24 horas a manifestação do Ministério Público. Não darei vista dos autos, pois não existe tal previsão legal e o próprio Ministério Público também é comunicado do flagrante (art. 306 do CPP). Se, ao final desse prazo, não se manifestar, concederei a liberdade provisória, aplicando, se for o caso, as medidas previstas no art. 319 do CPP;

c) E em uma única situação, atualmente, eu poderia, em tese, converter a prisão em preventiva, após o prazo de 24 horas, mesmo sem requerimento do Ministério Público: se eu mesmo tiver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, e mesmo assim colocando-o em liberdade após sanada a dúvida (art. 313, § único, do CPP). Em caso de manutenção dessa dúvida, darei um prazo de 10 dias para que a polícia providencie a identificação criminal, bem como as eventuais diligências que entender necessárias. E, em caso de silêncio, passado esse prazo, relaxarei a prisão, haja vista a desídia do Estado em cumprir seu mister, sem prejuízo da comunicação ao Ministério Público, para a apuração da responsabilidade do agente público desidioso.

Cabe acrescentar que nesse caso não se trataria de converter a prisão em preventiva com base em qualquer dos fundamentos já conhecidos, no caso, a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal em relação ao flagranteado, mas porque sequer se sabe quem realmente ele é.

A identificação criminal é, ao não civilmente identificado, providência obrigatória para a autoridade policial, mas, na prática, negligenciada. Este caso é um exemplo. Com efeito, diz o CPP:
"Art. 6º. Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:(...)
VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;"
E a recente lei 12.037/2009, determina que
"Art. 4º Quando houver necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado.
Art. 5º A identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação."
Assim, espero, com esse reposionamento parcial, estar melhor agindo de maneira a preservar o sistema acusatório, e a garantir o respeito aos ditames constitucionais em relação à brevidade exigida para a solução da prisão em flagrante e para a concessão da liberdade provisória.

No mais, mantenho o que disse em relação à inconstitucionalidade da manutenção por longo prazo da prisão em flagrante, sem que se conceda logo a liberdade provisória nos casos em que o juiz a vislumbrar.

*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Flagrante, Liberdade Provisória, Conversão e Decretação da Preventiva

Flagrante, Liberdade Provisória, Conversão e Decretação da Preventiva


Por Rosivaldo Toscano Jr *

"Verifique-se que a lei distingue converter a prisão em flagrante em preventiva (art. 310, II, do CPP) de decretá-la (art. 311 do CPP). Essa distinção parece, numa primeira leitura, de pouco importância. Mas é o traço mais importante para o deslinde dessa questão."


A questão mais tormentosa da lei 12.403/2011, que alterou as regras relativas à prisão e a liberdade provisória, tem sido definir qual o proceder do juiz ao receber o auto de prisão em flagrante, quando ela é legal. Restariam, segundo a nova redação do art. 310 do CPP, dois caminhos: a) conceder a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares diversas da prisão; b) converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão.

Formaram-se, basicamente, três correntes em relação a como proceder: A) a primeira dizendo que o juiz deve agir de plano, concedendo a liberdade provisória (com ou sem medidas cautelares diversas da prisão) ou convertendo-a em prisão preventiva; b) a segunda, informando que o juiz não pode, sem ouvir o Ministério Público, decidir sobre a conversão da prisão em preventiva. Alega-se que agir de ofício violaria o princípio acusatório. Mas também não avalia a imediata concessão da liberdade provisória e a imposição ou não de medidas cautelares diversas da prisão. Mantém-se a prisão em flagrante até lá; c) por fim, a terceira, sob o mesmo argumento, aceita a possibilidade da concessão da liberdade provisória de ofício, com ou sem medidas, mas não a conversão em preventiva. Mantém-se a prisão em flagrante até a manifestação do Ministério Público.

Numa análise mais apressada, as correntes mais consentâneas com um processo penal democrático seriam as das alíneas “b” e “c”. Acontece que a primeira dessas duas termina sendo perversa, prolongando até mesmo o encarceramento nos casos de quem deveria ser imediatamente solto através da concessão da liberdade provisória, abrindo brechas para decisionismos, ferindo o devido processo legal e a paridade de armas. E a última, acaba – nos casos em que não é concedida a liberdade provisória – pondo o preso em uma espécie de limbo jurídico pela manutenção de uma prisão administrativa e precaríssima, como é o caso da prisão em flagrante, com os mesmos efeitos práticos da preventiva, mas sem a necessária fundamentação constitucionalmente exigida para sua decretação (art. 93, IX, da Constituição da República).

Comumente dizemos que a prisão ilegal deve ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária competente. E isso decorre do art. 5º, inciso LXV da Constituição Federal, que assim dispõe:
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;”

Acontece que também não é constitucionalmente aceitável manter a prisão em flagrante quando o preso faz jus à liberdade provisória, em razão de outro mandamento constitucional, no caso, o do inciso posterior do mesmo art. 5º, o LXVI:

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;”

Vou primeiro tratar da hipótese da alínea “b” acima – a que apregoa que o juiz aguarde, até perto do fim do prazo geral de 5 dias para decidir (art. 800 do CPP), a manifestação do Ministério Público. Mantém-se o flagranteado, mesmo que fazendo jus à liberdade provisória com ou sem medidas cautelares, preso até que o juiz, transformado em mero órgão auxiliar do titular da ação penal, aguarde a palavra de ordem que, via de regra, é: prenda-se! No fundo, não seria esse proceder “garantista” um sintoma do real desejo de prender? Sob a alegação de que não se pode converter em prisão preventiva, pois se está agindo de ofício, e ferindo o sistema acusatório, não se solta, também.

Ademais, fere-se o devido processo legal, pois onde é que existe essa determinação de sobrestamento da análise imediata da prisão em benefício do titular da ação penal, a despeito da exigência constitucional de imediato conhecimento da matéria? E sobrestamento esse que, diga-se de passagem, fere o disposto no art. 5º, LXV e LXVI da Constituição da República?

Verifique-se que a lei distingue converter a prisão em flagrante em preventiva (art. 310, II, do CPP) de decretá-la (art. 311 do CPP). Essa distinção parece, numa primeira leitura, de pouco importância. Mas é o traço mais importante para o deslinde dessa questão.

Em se tratando de conversão, ela pressupõe uma prisão já existente: a em flagrante. O juiz não estará criando a restrição, naquele momento, da liberdade de ir e vir, pois essa já se encontra cerceada, ainda que por um título precário como é o flagrante. E nem estará agindo de ofício. É provocado por uma prisão que, mesmo precaríssima por ser administrativa, tem previsão constitucional e que, também por força da Constituição e da lei, reclama a imediata análise da regularidade formal (relaxamento) e material (liberdade provisória, medidas cautelares ou prisão preventiva). O magistrado, aí, age na qualidade de juiz de garantias – no caso, do direito fundamental de ir e vir. Assim, não se viola o sistema acusatório.

E precisa o juiz, imediatamente, fundamentar concretamente, e em caráter preliminar à conversão em preventiva, a razão do cabimento ou não da liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares diversas da prisão, sob pena de nulidade. Portanto, exige-se que o juiz, primeiro, enfrente tais questões prévias, que tanto interessam ao direito de liberdade do flagranteado. Não vige, aqui, o princípio da inércia.

Já na decretação da prisão preventiva de ofício, da qual também não compartilho, o provimento jurisdicional priva uma liberdade que anteriormente existia. E sem provocação. Ademais, não possui um momentum certo de acontecer. E pode ocorrer ou não tal decretação durante o processo, dependendo, sempre, do caso concreto.

Pode haver ação penal sem decretação de ofício da preventiva? Sim. Mas jamais prisão em flagrante sem que o juiz decida se é caso de liberdade provisória (com ou sem medidas) ou, em não sendo, de prisão preventiva.

Mas o senso comum teórico, acostumado que é a voluntarismos, faz uma interpretação que não tem lastro normativo. Cria uma malfadada espécie de “prazo mínimo para decidir”, exigindo-se que o juiz aguarde, sob a alegação de respeito à qualidade de custus legis do titular da ação penal, a manifestação ministerial. Tal manifestação, aliás, não poderia ser um parecer, pois não há prazo previsto em lei para isso. Teria que ser um pedido. E quem pede o que é? É parte. Fere-se, assim, a paridade de armas entre as partes.

Isso demonstra que, na verdade, trata-se de um ato de voluntarismo (de manter preso), sob o auspício de obediência a ditames constitucionais, pois a lei não mais prevê que o juiz aguarde a manifestação do Ministério Público para, só então, decidir. Esse ativismo judicial legisla em matéria penal, usurpando a função do Congresso Nacional.

Sintoma dessa postura encarceradora é o fato de que quando a lei permitia ao juiz expressamente decretar a prisão preventiva de ofício a qualquer tempo, mas nunca conceder a liberdade provisória, ninguém questionava a constitucionalidade da exigência de prévio parecer do Ministério Público para a concessão da referida liberdade, a despeito do que determina o art. 5º, LXVI, da CR, como visto acima.

À parte a questão ideológica, há um problema filosófico-paradigmático que vem desde o século XIX sobre o papel destinado ao juiz. Uma visão solipsista de que o magistrado tem poderes além da lei. Mas o sentido da interpretação não fica a dispor do intérprete. Ele não tem o direito se sobrepor ao legislador, criando o rito que lhe bem parecer, ainda grave quando repristina uma lei revogada – no caso, a antiga redação do art. 310, § único do CPP.

Interessante observar que o senso comum teórico veda a conversão em prisão preventiva, mas aceita que se mantenha uma prisão em flagrante – administrativa, assim, de alta precariedade constitucional – sem que seja avaliada a possibilidade de se conceder, ao mesmo tempo, a liberdade provisória.

É, no mínimo, paradoxal, a postura do juiz que, a pretexto de obedecer ao princípio acusatório, mantém o flagranteado preso sem judicializar o título dessa prisão – isto é, fundamentar a manutenção ou não da prisão –, violando expresso mandamento constitucional que determina imediata avaliação da legalidade da prisão, tanto para efeito de relaxamento quanto para concessão de liberdade provisória pura e simples ou a com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão. Isso não é obedecer ao sistema acusatório, mas, sim, ao inquisitório, na medida em que dá primazia ao acusador, a ponto de condicionar a decisão judicial à oportunização de manifestação daquele, a despeito da falta de previsão legal.

A finalidade deste escrito não é – e aí reside o que chamo de “perversa (e pseudo)filtragem constitucional” – um ode à conversão das prisões em flagrante em preventiva. Mas sim um alerta para que se quebre o paradigma procedimental-legal anterior; uma conclamação à imediata avaliação, pelo juiz, quando do recebimento do auto de prisão em flagrante, das duas etapas sequenciais do juízo de verificação da constitucionalidade da referida prisão: 1ª) da legalidade formal, cuja violação causa o relaxamento da prisão; b) da legalidade material, que consiste na possibilidade ou não da concessão da liberdade provisória, pura e simples ou com imposição de medidas cautelares diversas da prisão, e, somente em não sendo aquelas possíveis, da conversão da prisão em preventiva.

O juízo de análise imediata da prisão, mesmo com a conversão da prisão em flagrante em preventiva, é uma garantia ao preso de que houve obediência ao dever constitucional de fundamentar as decisões, possibilitando, também, sua impugnação, através da refutação de seus argumentos.

Ademais, não há mais tal previsão de esperar um determinado lapso temporal até que o Ministério Público se pronuncie. A finalidade é exatamente adequar a legislação processual à determinação constitucional de rápido exame da prisão, e não prolongá-la. Assim, o intérprete não pode retirar do texto algo que este não possui em si mesmo. O intérprete sempre atribui sentidos. E tais sentidos não estão à sua disposição. No mais, é agir com discricionariedade. E apostar na discricionariedade é transformar juízes em legisladores.

Somos seres-no-mundo (Heidegger). Isso quer dizer que estamos nos relacionando com as coisas e o mundo. Nesse mundo, o sentido das coisas não está ao nosso dispor. Trata-se de um espaço compartilhado. Essa visão criacionista de um procedimento dilatório não previsto em lei (esperar o pronunciamento do Ministério Público), em patente prejuízo da liberdade do flagranteado, sob o pretexto vago de obediência ao sistema acusatório, tem faceta positivista. Isso porque o positivismo busca descolar a enunciação da lei do mundo concreto, isto é, quando transforma a lei em uma razão autônoma. A faticidade (fatos sociais, conflitos) deixa de fazer parte da preocupação da teoria do direito (positivista). Cria-se uma separação entre questões fáticas e questões teóricas, entre validade e legitimidade e entre teoria do direito e teoria política. E quem está preso (facticidade) sofre.

Assim, cumpramos a Constituição. Não compete a nós a criação de prazos e nem de procedimentos ao alvedrio da lei. Analisemos de imediato, conforme exigência constitucional e, agora, também legal, a existência ou não da legalidade da prisão e da viabilidade da concessão da liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares diversas da prisão. E que se tivermos de manter a prisão, que façamos de acordo com o determinado no art. 93, IX, da Constituição da República, isto é, fundamentando expressamente nossas razões para a conversão em preventiva, expressando seus requisitos e eventuais fundamentos, para que o preso, o Ministério Público e a sociedade saibam os reais motivos do encarceramento e possam, se for o caso, impugná-los.

*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Conceito analítico de crime e teoria da ação (Por: Delegado Federal Gecivaldo Vasconcelos)

Há no Brasil uma grande polêmica entre os penalistas sobre o conceito analítico de crime. Existem, basicamente, duas correntes preferidas. Uma que adota um conceito tripartido (teoria tripartida) e a outra que adota o conceito bipartido (teoria bipartida).

Para a teoria bipartida o crime é um fato típico e antijurídico (ilícito), sendo a culpabilidade apenas um pressuposto de aplicação da pena. Já para a tripartida, o crime é um fato típico, antijurídico (ilícito) e culpável.

Tais conceitos sofrem, sem dúvida, a influência das teorias da ação (também referidas por alguns como teorias da conduta[1]). Não se pode, contudo, visualizar a teoria bipartida ou a teoria tripartida como teorias autônomas da ação, ou mesmo pretender fazer correlações exclusivas das mesmas com determinada teoria da ação, conforme se verá em seguimento.

A doutrina destaca as seguintes teorias da ação:

· Clássica, causalista, naturalista ou mecanicista – concebida por Franz Von Liszt e defendida por Ernst Von Beling e Radbruch. Para esta teoria “a estrutura do crime estava dividida em três partes: fato típico + antijuridicidade (ou ilicitude) + culpabilidade. A primeira parte, qual seja, o tipo, abarcava somente os aspectos objetivos do crime, enquanto a culpabilidade ficava com os de natureza subjetiva (dolo e culpa), ou seja, a parte externa do crime ficava no tipo e a interna, na culpabilidade”[2]. Atualmente está superada. Seu apogeu se deu no Século XIX e início do Século XX;

· Neoclássica, neokantista ou causal-valorativa
– representou um aperfeiçoamento da teoria clássica. Passou-se a estabelecer um conceito de ação, além de naturalista, também normativo[3]. Segundo ponderam Gomes e Molina: “Apesar de toda ênfase dada ao aspecto valorativo do Direito penal (que não é uma ciência naturalista, sim, valorativa), no que concerne à estrutura formal da tipicidade pouco se alterou: continuou sendo concebida preponderantemente como objetiva. A tipicidade penal, para o neokantismo, é tipicidade objetiva e valorativa. O lado subjetivo da tipicidade só viria a ser admitido (alguns anos depois) com o finalismo de Welzel”[4];


· Finalista – criada por Hans Welzel no início da década de 1930, defende que a conduta é “[...] o comportamento humano, consciente e voluntário, dirigido a um fim. Daí o seu nome finalista, levando em conta a finalidade do agente”[5]. Na teoria finalista o dolo e a culpa, então posicionados como elementos da culpabilidade, passaram a ser posicionados na conduta, passando a integrar o fato típico. No sistema finalista passou a culpabilidade a ter como elementos apenas a imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa;

· Social – criada por Johannes Wessels, tendo como principal adepto Hans-Heinrich Jescheck. Destaca a importância da análise da relevância social da conduta na configuração do fato típico, sem desprezar os postulados finalistas. Por essa linha, uma ação socialmente adequada não pode ser considerada típica, embora atenda aos demais requisitos inerentes ao fato típico;

· Funcional – surgida na década de 1970, tendo como principal representante Claus Roxin, passou a considerar o fato típico sob uma tríplice dimensão: a) objetiva; b) normativa; e c) subjetiva. Segundo Gomes e Molina: “O que o funcionalismo agregou como novidade na teoria do tipo penal foi a imputação objetiva, que faz parte da segunda dimensão (normativa ou valorativa) do tipo penal [...]”[6]. O funcionalismo não anula o finalismo, apenas o complementa, acrescentando ao fato típico uma dimensão normativa autônoma materializada na imputação objetiva.

Daí Gomes e Molina afirmarem que com o funcionalismo: “Do tipo penal passou a fazer parte a imputação objetiva (dimensão normativa do tipo), que se expressa numa dupla exigência: a) só é penalmente imputável a conduta que cria ou incrementa um risco proibido (juridicamente desaprovado); b) só é imputável ao agente o resultado que é decorrência direta desse risco”[7]. No modelo de funcionalismo defendido por Roxin: “A conduta passa a ser uma categoria pré-jurídica (lógico-objetiva), que não pode ser entendida apenas como fenômeno causal ou finalista, mas inserida dentro de um contexto social, ordenado pelo Estado por meio de uma estratégia de políticas criminais”[8]. Outra vertente da teoria funcional aparece na obra de Günter Jakobs, que define a ação como fruto de um resultado individualmente evitável[9]; sendo que o funcionalismo defendido por este autor parte do pressuposto que a função do direito penal consiste na proteção da norma penal[10], devendo a construção teórica subjacente buscar a realização dessa função.

O funcionalismo também é identificado no pensamento de Eugenio Raúl Zaffaroni, influenciando principalmente a concepção de tipicidade (via teoria da tipicidade conglobante), pois para este autor: “O tipo objetivo decompõe-se em tipo objetivo sistemático (requisitos formais) e tipo objetivo conglobante (que cuida da conflitividade da conduta assim como a sua atribuição ou imputação ao agente)”[11].

Em síntese, as correntes funcionalistas em geral partem da concepção que a sociedade é um sistema e o direito penal é um subsistema, que existe para cumprir determinadas funções [12].


Demonstradas em linhas gerais as principais teorias da ação que, na realidade, não se limitam a dissecar a conduta enquanto elemento integrante do fato típico, mas também influenciam em outras variáveis que compõem a estrutura do crime (como a tipicidade e a culpabilidade, por exemplo); cabe-nos agora fazer um paralelo dessas teorias com o conceito analítico de crime.

Primeiramente há que se afastar a falsa ideia que o conceito tripartido de crime é incompatível com a teoria finalista; visto que ele é o que melhor representa o pensamento dessa corrente.

Nesse sentido ensina Cleber Masson[13]:
Diversas pessoas, inadvertidamente, alegam que o acolhimento de um conceito tripartido de crime importa obrigatoriamente na adoção da teoria clássica ou causal da conduta.
Não é verdade. Quem aceita um conceito tripartido do crime tanto pode ser clássico como finalista. De fato, Hans Welzel, criador do finalismo penal, definia o crime como fato típico, ilícito e culpável […].
Em verdade, a principal diferença entre os clássicos (causalistas) e os finalistas reside no fato destes considerarem o dolo e a culpa como elementos integrantes da conduta enquanto aqueles consideram o dolo e a culpa como integrante da culpabilidade.

Tanto o conceito bipartido de crime quanto o conceito tripartido são compatíveis com o finalismo. Já o causalismo é compatível somente com o conceito tripartido, visto que situa o dolo e a culpa dentro da culpabilidade e, para o conceito bipartido, a culpabilidade não integra a estrutura do crime[14].

Na concepção atual da doutrina pátria temos uma clara divisão entre os finalistas estritamente alinhados ao pensamento de Welzel, que adotam o conceito tripartido de crime, e os finalistas dissidentes (no dizer de Gomes e Molina[15]), que adotam o conceito bipartido.

Como visto, tanto os adeptos da corrente tripartida quanto os defensores do conceito bipartido alinham-se ao finalismo, de modo que esta ainda é a teoria dominante na doutrina nacional.

O funcionalismo, principalmente na vertente defendida por Claus Roxin, atualmente tem ganhado, contudo, considerável espaço na doutrina brasileira sob o influxo da teoria da imputação objetiva, que interfere marcantemente na noção de tipicidade. Para Roxin o crime é composto de três requisitos: a) tipicidade; b) antijuridicidade; e c) responsabilidade[16]. A culpabilidade, sob essa visão, assim como no finalismo tripartido, é elemento componente da estrutura do crime, estando dentro da responsabilidade[17].

No âmbito da tipicidade, explica Roxin que a teoria da imputação objetiva[18]:
Em sua forma mais simplificada, diz ela: um resultado causado pelo agente só deve ser imputado como sua obra e preenche o tipo objetivo unicamente quando o comportamento do autor cria um risco não permitido para o objeto da ação (1), quando o risco se realiza no resultado concreto (2) e este resultado se encontra dentro do alcance do tipo (3).
Fica claro que a teoria em comento propõe um certo esvaziamento da conduta (plano subjetivo do tipo)[19], considerando que muitos problemas de imputação que antes deveriam ser resolvidos (alguns com bastante dificuldade) pela análise da presença ou não do dolo ou da culpa, sob a visão da imputação objetiva podem ser solucionados, com mais facilidade (segundo Roxin), com a análise da tipicidade, distanciando-se nesse ponto do finalismo. E, ainda, fatos em que o caráter criminoso dos mesmos, sob a luz do finalismo, somente poderia ser afastado pelo reconhecimento de excludentes de ilicitude passam, sob a luz da imputação objetiva, a serem considerados atípicos[20].

Por exemplo: JOÃO, mesmo dirigindo obedecendo todas as normas de trânsito, atropela e mata PEDRO por este ter atravessado de forma desatenta em sua frente. Nesse caso, diante do finalismo, chegaremos à conclusão que não houve dolo nem culpa de JOÃO, ficando por isso afastada a sua responsabilidade penal. Sob o prisma da teoria da imputação objetiva também se afastará a responsabilidade de JOÃO, porém sem necessidade de analisar a presença de dolo ou culpa, mas somente analisando se o mesmo, com seu comportamento, criou um risco proibido. Estando óbvio que o risco criado foi permitido, considera-se não haver tipicidade[21].

Outro exemplo: JOÃO, oficial de justiça, cumprindo seu mister, dirige-se a uma residência para cumprir um mandado de busca e apreensão, porém é impedido pelo morador. Arromba, então, uma porta da casa e lá ingressa para cumprir o mandado. Nesse caso, pela construção finalista, JOÃO incorre em fato típico, porém sua responsabilidade penal é excluída pelo reconhecimento da presença da excludente de ilicitude denominada estrito cumprimento do dever legal. Sob o aspecto da teoria da imputação objetiva, simplesmente a conduta de JOÃO foi atípica, visto que não criou um risco proibido.

Apesar da influência que vem exercendo a teoria da imputação objetiva no Brasil, mesmo os penalistas que a adotam não chegam a rever os elementos básicos (fato típico, ilicitude e culpabilidade) do conceito analítico de delito. Apenas passam a fazer uma releitura desses elementos. Desse modo, mesmo com essa inovação continua a polêmica entre conceito bipartido e tripartido.

Importante ressaltar, outrossim, que também surge muito forte na doutrina brasileira a teoria da tipicidade conglobante, de Eugenio Raúl Zaffaroni. Essa teoria também não tem influenciado na discussão sobre os conceitos tripartido e bipartido de crime, até mesmo porque Zaffaroni é claramente adepto da concepção de que o crime é fato típico, antijurídico e culpável[22].

O enfoque primordial proposto pela tipicidade conglobante volta-se ao desiderato de redefinir a noção de tipicidade buscando sustentar como atípicas as condutas que, apesar de serem formalmente típicas, sejam impostas ou fomentadas por outra norma. Por esse ângulo, o estrito cumprimento do dever legal, por exemplo, seria uma causa de exclusão da tipicidade e não uma causa de exclusão de antijuridicidade, considerando que tal instituto respalda condutas impostas pela norma.


Tudo que até aqui foi escrito objetivou situar o leitor, sem confusões teóricas, na apreciação da discussão quanto aos conceitos bipartido e tripartido de crime.

Necessário, ainda, deixar claro que o nosso Código Penal, com sua atual formatação, é claramente finalista[23], ou seja, suas premissas gerais são fixadas a partir do finalismo de Welzel. Essa conclusão, contudo, não dá vantagem à corrente bipartida ou tripartida, pois já demonstramos que ambas são compatíveis com a teoria finalista da ação.

Vejamos em seguimento o que argumentam os defensores das teorias tripartida e bipartida a favor de suas concepções.

Os adeptos da corrente bipartida dizem que com a evolução da teoria da ação implementada pelo finalismo demonstrou-se estar o dolo e a culpa em sentido estrito insertos na conduta, que faz parte do fato típico, não fazendo mais sentido defender que a culpabilidade deve fazer parte do conceito de crime[24]. Quer dizer, segundo essa linha de pensamento, quando ainda predominava o causalismo faria sentido dizer que a culpabilidade era elemento integrante do crime, pois se entendia que o dolo e a culpa em sentido estrito seriam componentes da noção de culpabilidade; mas com o finalismo essa lógica deveria ser diferente.

Argumentam ainda que[25]:
Em primeiro lugar, no Título II da Parte Geral o Código Penal trata “Do Crime”, enquanto logo em seguida, no Título III, cuida “Da Imputabilidade Penal”. Dessa forma, crime é o fato típico e ilícito, independentemente da culpabilidade, que tem a imputabilidade penal como um dos seus elementos. O crime existe sem a culpabilidade, bastando seja o fato típico e revestido de ilicitude.

Em igual sentido, ao tratar das causas de exclusão da ilicitude, determina o Código Penal em seu art. 23 que “não há crime”. Ao contrário, ao relacionar-se às causas de exclusão da culpabilidade (arts. 26, caput, e 28, § 1º, por exemplo), diz que o autor é “isento de pena”.

Assim sendo, é necessário que o fato típico seja ilícito para a existência do crime. Ausente a ilicitude, não há crime.

Por outro lado, subsiste o crime com a ausência da culpabilidade. Sim, o fato é típico e ilícito, mas o agente é isento de pena. Em suma, há crime, sem a imposição de pena. O crime se refere ao fato (típico e ilícito), enquanto a culpabilidade guarda relação com o agente (merecedor ou não de pena).
Os defensores da corrente tripartida afirmam, de outro modo, que excluir a culpabilidade da estrutura do crime e considerá-la apenas um pressuposto para aplicação da pena é uma impropriedade, posto que os demais elementos da estrutura do crime (fato típico e antijuridicidade) também funcionam como pressupostos de aplicação da pena; e isso não elimina a condição dos mesmos de elementos integrantes da estrutura do crime.

Tanto que se o fato não for típico ou não for ilícito (antijurídico) não se terá como aplicar pena ao agente. Segundo essa linha de pensamento, embora o código penal utilize a expressão “isento de pena” quando quer se referir às causas dirimentes da culpabilidade; tal opção legislativa não nos permite concluir que o crime seja tão somente um fato típico e antijurídico, pois tal expressão também é utilizada em dispositivos que nada têm a ver com a culpabilidade (por exemplo: art. 181 do CP)
[26].

Criticando a teoria bipartida, assevera Guilherme de Souza Nucci que com a exclusão da culpabilidade do conceito de crime teríamos que considerar criminoso o menor de 18 anos simplesmente porque praticou um fato típico e antijurídico ou aquele que, sob coação moral irresistível, fez o mesmo[27]; o que sabidamente seria equivocado tecnicamente.

De nossa parte, acatamos o conceito tripartido, filiando-nos aos argumentos já citados.

Por fim, resta ponderar que o conceito tripartido é o predominante na doutrina, apesar de haver vários adeptos da corrente bipartida no Brasil.

Nesse sentido[28]:
O conceito de delito ainda hoje predominante na ciência do Direito Penal (em termos internacionais, inclusive) é o tripartido (cf. Juarez Cirino dos Santos, A moderna teoria do fato punível, cit., p. 5), elaborado da seguinte forma: fato típico, antijurídico e culpável.
Quase a totalidade absoluta dos manuais de Direito penal (fora do Brasil e até mesmo alguns brasileiros: Bitencourt, Regis Prado, Fragoso, Juarez Cirino, Greco etc.) adota esse sistema (tripartido).
Greco[29] e Nucci[30], adeptos do conceito tripartido, também referem a predominância do mesmo.

Registre-se, outrossim, que René Ariel Dotti, Damásio E. de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete e Cleber Masson, dentre outros, adotam o conceito bipartido[31].

Por todo o exposto, nota-se que os efeitos da opção pelo conceito tripartido ou bipartido são muito mais teóricos do que práticos; pois para ambas as correntes se não houver a culpabilidade não haverá a imposição de pena. Na realidade, estamos com os defensores da corrente predominante por entendermos que classificar a culpabilidade como pressuposto de aplicação da pena, excluindo-a da estrutura do crime, representa, com a devida vênia, uma redundância conceitual, considerando que todos os elementos estruturais do delito funcionam como pressupostos de aplicação da pena.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato. Manual de direito penal – parte geral, v. I. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2006.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral, v. 1. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral, v. I. 12ª ed. Niterói: Impetus, 2010.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível, 3ª ed. Curitiba: Editora Fórum, 2004.

MASSON, Cleber. Direito penal – parte geral, v. 1. 3ª ed. São Paulo: Método, 2010.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro – parte geral, v. 1. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007.

ROXIN, Claus; trad. Luís Greco. Estudos de direito penal, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

SOUZA, Ricardo Antonio de. Imputação objetiva e suas modificações na teoria do crime. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1026, 23 abr. 2006. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2011.


NOTAS:

[1] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral, v. 1. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 108.
[2] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral, v. 1. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 110.
[3] SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível, 3ª ed. Curitiba: Editora Fórum, 2004, p. 113.
[4] GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007, p. 230.
[5] MASSON, Cleber. Direito penal – parte geral, v. 1. 3ª ed. São Paulo: Método, 2010, p. 199.
[6] GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007, p. 231.
[7] Ibidem, p. 231.
[8] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral, v. 1. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 125.
[9] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro – parte geral, v. 1. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 312.
[10] GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007, p. 183.
[11] GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007, p. 189.
[12] Ibidem, p. 183.
[13] MASSON, Cleber. Direito penal – parte geral, v. 1. 3ª ed. São Paulo: Método, 2010, p. 162.
[14] Ibidem, p. 163.
[15] GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007, p. 182.
[16] Ibidem, p. 184.
[17] Ibidem, p. 184.
[18] ROXIN, Claus; trad. Luís Greco. Estudos de direito penal, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 104.
[19] Daí afirmar Roxin, ibidem, p. 115, que: “Através da moderna teoria da imputação, o tipo objetivo aumenta em importância também em relação àquilo que lhe conferia a teoria finalista, e isto à custa do tipo subjetivo. É verdade que o posicionamento do dolo no tipo subjetivo é plenamente compatível com a teoria da imputação objetiva. Mas a concepção da ação típica é bem diferente”. O mesmo autor afirma, ibidem, p. 119: “[…] a teoria da imputação objetiva também acaba, mediatamente, por estreitar o campo do dolo”.
[20] SOUZA, Ricardo Antonio de. Imputação objetiva e suas modificações na teoria do crime. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1026, 23 abr. 2006. Disponível em: . Acesso em: 2 fev. 2011.
[21] GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral, v. I. 12ª ed. Niterói: Impetus, 2010, p. 228.
[22] GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007, p. 189.
[23] MASSON, Cleber. Direito penal – parte geral, v. 1. 3ª ed. São Paulo: Método, 2010, p. 163.
[24] MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato. Manual de direito penal – parte geral, v. I. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 83-84.
[25] MASSON, Cleber. Direito penal – parte geral, v. 1. 3ª ed. São Paulo: Método, 2010, p. 164.
[26] GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral, v. I. 12ª ed. Niterói: Impetus, 2010, pp. 140-141.
[27] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2006, pp. 118-119.
[28] GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos. Direito Penal – parte geral. v. 2. São Paulo: RT, 2007, pp. 190-191.
[29] GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral, v. I. 12ª ed. Niterói: Impetus, 2010, p. 18.
[30] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 118.
[31] MASSON, Cleber. Direito penal – parte geral, v. 1. 3ª ed. São Paulo: Método, 2010, p. 163.

Resultado jurídico concreto e tipicidade material

LUIZ FLÁVIO GOMES

Resultado jurídico concreto ou real: a ofensa concreta ou real é a primeira exigência derivada do resultado jurídico desvalioso. Somente a lesão ou o perigo concreto de lesão é que configura o resultado jurídico exigido pelo princípio da ofensividade. Não há espaço para o perigo abstrato ou presumido no Direito penal do ius libertatis. De outro lado, já não basta para a tipicidade penal a mera realização formal dos requisitos típicos. Uma vez constatada a dimensão formal da tipicidade objetiva, impõe-se o exame subseqüente tanto da desvaloração da condura como da afetação do bem jurídico protegido (dimensão material da tipicidade objetiva). Nenhum crime pode ser reconhecido sem a presença do desvalor da ação (da conduta) e do desvalor do resultado (jurídico). Mesmo porque, nullum crimen sine iniuria (de acordo com nossa teoria constitucionalista do delito).

Não pode o resultado jurídico ser presumido. Partindo-se da premissa de que o desvalor do resultado (resultado jurídico) é também fundamento inseparável do delito (do injusto penal), não há dúvida que esse Direito penal (da ofensividade) não se coaduna com o perigo abstrato (que é inconstitucional e inválido dentro do Direito penal). Tendo em vista as graves conseqüências penais que decorrem para o agente, só é proporcional a incidência dessas conseqüências quando o agente tenha afetado de modo concreto bens jurídicos de terceiros.

No caso da arma desmuniciada (STF, HC 81.057-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence) não há que se falar em delito (de posse ou de porte de arma) porque, sem munição, não conta ela com potencialidade lesiva real. Nesse mesmo sentido confira RHC 90.197-DF, Primeira Turma do STF. Colocada a questão nesses termos, tornou-se incompreensível o voto do Ministro Eros Grau no HC 90.075, que passou a entender que munição, sem arma, constitui delito. Uma munição isolada, sem arma, é totalmente inofensiva (não reúne nenhuma potencialidade ofensiva). Materialmente essa conduta não pode ser reputada como delitiva. Considere-se, ademais, que o bem jurídico protegido não é a simples autorização administrativa ou permissão do Estado para portar arma de fogo ou munição. Os bens envolvidos são pessoais e de grande relevância (vida, integridade física, patrimônio etc.). Mas a polêmica sobre a arma desmuniciada ainda não terminou.

Com efeito, a Min. Ellen Gracie voltou a se manifestar no sentido da existência de crime. Vejamos a sua argumentação:

“Habeas-corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 14 da Lei 10.826/03 — Estatuto do Desarmamento —, no qual se pretende a nulidade da sentença condenatória, sob alegação de atipicidade da conduta, em razão de a arma portada estar desmuniciada. A Min. Ellen Gracie, relatora, denegou a ordem por entender que o tipo penal do art. 14 da mencionada lei contempla crime de mera conduta, sendo suficiente a ação de portar ilegalmente a arma de fogo, ainda que desmuniciada. Aduziu que a ofensividade deste artefato não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, mas também, no seu potencial de intimidação. Enfatizou que o crime é de perigo abstrato, não tendo a lei exigido a efetiva exposição de outrem a risco, irrelevante a avaliação subseqüente sobre perigo à coletividade.” HC 95073. Rel. Min. Ellen Gracie, 2/6/09.

A ementa que acaba de ser transcrita é o retrato (acabado) do velho Direito penal, positivista legalista, causalista, subjetivista, antinormativista formal etc. Está na mesma linha de outra decisão do STF: HC 96.922-RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, de 17.3.2009.

Para nossa teoria constitucionalista do delito nada disso se sustenta, na atualidade. O crime é de mera conduta, mas essa classificação (do provecto Direito penal) é puramente naturalista. Depois de Roxin (1970), sobretudo, o Direito penal e, especialmente, a tipicidade objetiva, se desenvolve, necessariamente, em dois planos: formal e material. O crime (portar arma de fogo), no plano formal, é de mera conduta. No plano jurídico-material é um crime de perigo (perigo de lesão). Por força do princípio da ofensividade, sem a comprovação efetiva do perigo (concreto) não existe crime.

Para a Ministra Ellen Gracie basta a ação (desvalor da ação) para a configuração do crime, porque tratar-se-ia de perigo abstrato. Com a devida vênia, não existe mais (já não pode existir) crime fundado exclusivamente no desvalor da ação. Todo delito, necessariamente, exige também desvalor do resultado jurídico (que é a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico protegido). Para a Ministra a ofensividade reside no poder de intimidação da arma. Ocorre que o bem jurídico protegido não é a tranquilidade social (tranqüilidade das pessoas), sim, a incolumidade pública (de forma direta) assim como bens jurídicos pessoais tais como a vida, integridade física etc. (de forma indireta). Claro que a arma de fogo (municiada ou desmuniciada) tem poder de intimidação. Precisamente por isso, quando usada numa subtração, o delito é o de roubo (não o de furto). A arma desmuniciada pode ser instrumento do delito de roubo (não há nenhuma dúvida). Mas a questão, problemática, é outra: e quando a posse da arma é o único fato cometido? Para nós (teoria constitucionalista do delito) só existe crime, nesta situação, se a arma tem capacidade de disparo e disponibilidade de uso (RHC 81.057-SP).

Com a devida vênia, a decisão ora comentada é muito preocupante. Espelha um grande retrocesso na jurisprudência do STF (firmada no RHC 81.057), que coloca em risco o estatuto das liberdades típicas do Estado de Direito. Segue a linha do perigo abstrato, que ignora o Direito penal da ofensividade assim como a teoria do bem jurídico, a questão da proporcionalidade etc. Filia-se, ademais, à concepção do delito como mera violação – formal – da norma, sem nenhum questionamento sobre o verdadeiro bem jurídico protegido e a ofensa respectiva.

Estamos falando de um crime de posse (“posesion“), que significa uma extraordinária antecipação da tutela penal (Vorfeldkriminalisierung). Essa antecipação da proteção penal (que dispensa uma lesão ao bem jurídico) só é legítima (no Estado constitucional e democrático de Direito) quando se constata um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos (incolumidade pública ou bens pessoais). No caso da arma de fogo o perigo concreto exige: (a) idoneidade ofensiva da arma e (b) disponibilidade de uso (tal como reconhecido pelo STF, RHC 81.057).

Arma desmuniciada é arma, mas não é de fogo (porque não conta com possibilidade de disparo) (STF, RHC 81.057). Salientou-se (na decisão da Ministra) que a lei (atual art. 14 da Lei 10.829/2006) não faz nenhuma referência à necessidade de se aferir o potencial lesivo da arma. A lei, secamente enfocada, de fato, nada diz. Mas quem faz essa exigência é a Constituição, o princípio da proporcionalidade, a teoria da norma, o princípio da ofensividade etc. Detrás do texto legal está a norma (é proibido portar arma de fogo). Toda norma primária tem dois aspectos: (a) o valorativo e (b) o imperativo. Quem porta ou possui qualquer tipo de arma de fogo viola o aspecto imperativo da norma (que manda exatamente o contrário). Esse é um lado da questão. O outro reside na violação do aspecto valorativo da norma, ou seja, na violação do bem jurídico protegido (que, para nós, indiretamente, são a vida, a integridade física etc.). Arma desmuniciada, quebrada etc. não provoca risco concreto para ninguém. Por isso que não serve para a configuração do delito (isolado, de porte de arma). Na atualidade, houve abandono total da teoria determinista pura em relação à norma. É um retrocesso a sua adoção, com a devida vênia. A linha argumentativa da Min. Ellen Gracie coloca em risco as bases do nosso Estado constitucional e humanista (ou humano-centrista) de Direito.

Sua decisão, como se vê, incorreu em equívoco manifesto. Palmilhou o caminho do perigo abstrato, aceitou o pacote (o embrulho) do legislador e foi totalmente acrítica. Juiz que assim procede cumpre o papel de correia de transmissão (do jeito que vem, vai). É com preocupação e decepção que vemos uma decisão como a que acaba de ser comentada (sobretudo quando vem da nossa mais alta Corte de Justiça). Quem já votou brilhantemente pela inconstitucionalidade de vários dispositivos do próprio Estatuto do Desarmamento (ADIn 3112), valorizando a cultura das bases democráticas do nosso direito, não pode sofrer recaída tão profunda.

Também por falta de ofensividade ao bem jurídico o STJ cancelou a Súmula 174 que permitia o aumento de pena no delito de roubo no caso de arma de brinquedo (STJ, REsp 213.054). O mero transporte de carvão sem a documentação fiscal, mas com autorização do IBAMA, não constitui delito ambiental (STF, RHC 85.214, rel. Min. Sepúlveda Pertence). Em todas essas situações não há que se falar em tipo penal objetivo. O perigo abstrato, de acordo com nosso entendimento, não serve, por si só, para fundamentar o injusto penal.

Tampouco a realização formal dos requisitos típicos justifica-se o reconhecimento do delito. Além da dimensão formal da tipicidade objetiva, impõe-se o exame da ofensa ao bem jurídico. Ofensa concreta (não presumida). Essa é uma parte (bastante relevante) da dimensão material da tipicidade objetiva.

O mais grave em todas as condenações penais fundadas em situações de perigo abstrato é o seguinte: o juiz condena o réu por algo que não é crime. Por força do art. 13 do CP não existe crime sem resultado. Quando o juiz condena o juiz por perigo abstrato ele o condena sem a existência de qualquer resultado. Condena-se sem a existência de um crime. É um caso de pena sem crime. Viola-se o nulla poena sine crime.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Mudanças no CPP podem contribuir para aumento da impunidade, alerta promotor de Justiça


Por CLÊNIA GORETTH
Sexta, 08 de julho de 2011, 14h51

A fungibilidade das cautelares e a dificuldade para se decretar a prisão preventiva, estabelecidas na Lei 12.403, que altera o Código de Processo Penal, foram apontadas pelo promotor de Justiça Antônio Sérgio Cordeiro Piedade, como os aspectos mais preocupantes da nova legislação. Segundo ele, ao contrário do que tem sido propagado à opinião pública, a lei não estabelece condições e capacidade técnica para solução dos problemas relacionados à criminalidade.

“Ao estabelecer possibilidades de aplicação de medidas cautelares ao invés da prisão preventiva, o legislador não preservou o garantismo integral. Somente pensaram no acusado e não na vítima e na sociedade. O princípio da proporcionalidade foi pensado apenas enquanto proibição de excesso”, ressaltou Piedade.

Nesta entrevista, o promotor de Justiça apresenta as principais alterações contempladas na lei e comenta sobre as expectativas em relação à nova legislação Antônio Sérgio Cordeiro Piedade atua no Tribunal do Júri em Cuiabá, desde 2006 Possui mestrado e é doutorando em Direito Penal pela PUC/SP.

IMPRENSA: Quais foram as principais alterações contempladas na Lei 12.403?

PIEDADE: A lei traz novas regras no tocante a prisão, medidas cautelares e liberdade provisória. Ela prevê uma série de medidas cautelares e traz a possibilidade de o juiz ao invés de decretar a prisão preventiva, aplicar determinadas medidas cautelares diversas da prisão. Entre elas, estão o comparecimento periódico em juízo no prazo e condições fixadas pelo juiz para justificar as suas atividades; a proibição de frequentar determinados locais; proibição de manter contato com determinadas pessoas; proibição de ausentar-se da comarca; recolhimento domiciliar no período noturno; suspensão do exercício de função pública ou atividade de natureza econômica e financeira; internação provisória no caso do inimputável e semi- imputável, que é novidade. Nós tínhamos a medida de segurança só em caráter definitivo e não em caráter provisório, além da monitoração eletrônica .

IMPRENSA: Qual a avaliação que o senhor faz?

PIEDADE: O grande problema da lei é o paradoxal descompasso entre a criminalidade que avança e a repressão que recua. Alguns institutos estabelecidos já são utilizados na suspensão condicional da pena, no sursi processual previsto na Lei 9.099/95, no livramento condicional e nas penas alternativas. O grande problema que nós questionamos é o fato do Estado não ter estrutura para fiscalização dessas medidas cautelares diversas da prisão e o receio que temos é de que essas medidas se transformem em mecanismo de impunidade velada, silenciosa. Não queremos que o indivíduo cumpra pena antes da sentença penal condenatória em trânsito em julgado, mas em algumas situações é necessário uma prisão processual, uma prisão cautelar, uma prisão preventiva.

IMPRENSA: E a prisão em flagrante?

PIEDADE: Hoje, a prisão em flagrante não mantém o indivíduo preso por si só. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deve fazer uma análise da legalidade do flagrante. Caso não tenha sido expedida a nota de culpa, a ciência das garantias constitucionais, se o flagrante foi preparado ou forjado, o juiz relaxa essa prisão em flagrante. Quando a prisão em flagrante for regular, atendendo os requisitos extrínsecos e intrínsecos, o juiz avalia a necessidade de decretar a prisão preventiva, ou seja, ele deve converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, sendo que o flagrante não tem mais o condão de prender por si só. Isso quando presente os requisitos do artigo 312 do CPP. E quando for o caso, se ausentes os requisitos, ele concede a liberdade provisória ao indivíduo.

IMPRENSA: Quais são as outras limitações para a prisão preventiva?

PIEDADE: Além da limitação do flagrante, hoje para o juiz decretar uma prisão preventiva ele deve analisar o artigo 313 do CPP, somente podendo decretá-la quando for crime doloso punível com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos. Acabam ficando fora deste rol o furto, a receptação, quadrilha ou bando, coação no curso do processo, alguns crimes de preconceito e isso traz um problema muito sério. Imagine o indivíduo que tem vários delitos de furto ou que esteja envolvido no esquema de receptação, com ligações com o crime organizado, ou ainda, uma coação no curso do processo, onde uma testemunha imprecindível, para a elucidação de um crime de homicídio é ameaçada.

Nestes casos, o juiz está de mãos atadas para decretar a prisão preventiva e com certeza haverá prejuízo na produção probatória e para garantia da ordem pública. Ela somente poderá ser concretizada se o réu for reincidente, mas a reincidência significa o cometimento de um delito após o trânsito em julgado do primeiro delito. Ou seja, se o indivíduo ostentar péssimos antecedentes, ainda assim, não há como o juiz decretar a prisão preventiva.


IMPRENSA: E nos casos de violência doméstica e familiar?

PIEDADE: Quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou alguma pessoa deficiente, há possibilidade de decretar a prisão para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. A lei criou também a prisão domiciliar, que substitui a prisão preventiva nas seguintes situações: quando o agente for maior de 80 anos; extremamente debilitado por doença grave ou quando o indivíduo seja imprescindível aos cuidados especiais de uma pessoa menor de seis anos de idade ou com deficiência ou a gestante a partir do sétimo mês ou quando a gravidez for de alto risco. Agora, é necessário a existência de prova idônea para que ocorram essas substituições.

IMPRENSA: A lei trouxe alterações em relação ao pagamento de fianças?

PIEDADE: No tocante as fianças, no delito leve era possível a liberdade provisória com pagamento de fiança e no delito grave você conseguia liberdade provisória sem fiança. De acordo com o artigo 323, os crimes com a pena mínima até dois anos eram afiançáveis e com pena mínima acima de dois anos eram inafiançáveis. Hoje, o delegado também pode conceder a liberdade provisória com fiança nos casos em que pena máxima não seja superior a quatro anos. Ou seja, aumentou a gama de possibilidade para que o delegado conceda fiança. Além disso, atualmente não temos mais aquela limitação da fiança como tínhamos antes. Só não se concede fiança nos crimes de racismo, tortura, tráfico de entorpecentes, drogas afins, terrorismo e nos crimes definidos como hediondos e naqueles cometidos com grupos armados. Essa questão cria um problema na lei, pois no delitos elencados como graves pelo legislador constituinte, o indivíduo obtém uma liberdade provisória quando não estiver presentes os requisitos, sem fiança, ao passo que nos outros delitos se concede uma liberdade provisória com fiança. Então deveria o legislador constituinte, além de tornar inafiançável esses delitos, ter vedado a liberdade provisória no curso da lide penal, pois assim teríamos proporcionalidade . Além disso, nós tivemos uma alteração no valor da fiança, que foi elevado a um patamar mais alto.

IMPRENSA: Na sua avaliação, quais seriam os reflexos mais imediatos para a sociedade?

PIEDADE: Essa fungibilidade das cautelares, a dificuldade de prisão com medidas inócuas e essa restrição para a decretação da prisão preventiva vão trazer um risco muito grande para a sociedade. Até porque, teremos a concessão de várias liberdades provisórias. Ou seja, o Estado não dota o sistema prisional de condições, com penitenciárias, com cadeias públicas, e arruma mecanismos para limpar a população carcerária, esquecendo-se da necessidade de se dar uma resposta eficaz à sociedade. Hoje, em virtude dos institutos despenalizadores já existentes, fica preso somente o indivíduo que tenha cometido delito com violência ou grave ameaça ou delito grave. Só tem ficado preso o indivíduo que comete crime de estupro, homicídio, roubo e latrocínio. O bem jurídico de alguns delitos graves, com lesividade social, ficarão sem uma resposta por parte do Estado.

IMPRENSA: A lei trouxe algum ponto positivo?

PIEDADE: Um ponto importante que eu vejo na lei é a criação de um cadastro de mandados de prisão preventiva que será mantido pelo Conselho Nacional de Justiça. Com isso, qualquer agente poderá cumprir o mandado de prisão que estará registrado no CNJ, ainda que fora da competência territorial do juiz que expediu. Na verdade, somente o tempo dirá se a lei foi efetiva e positiva. Agora o que não se deve é criar expectativa perante a opinião pública, de que a lei vai resolver os problemas da violência e da criminalidade, pois não vai. Sabemos que ela traz em sua essência algumas questões atécnicas.

IMPRENSA: Quais foram os argumentos utilizados pelos legisladores para promoverem tais alterações?

PIEDADE: Hoje há uma ideologia muito clara no direito penal e no processo penal que caminha nessa onda de se hipervalorizar o princípio da presunção da inocência, esquecendo-se de outros princípios, notadamente o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente. Se esquece que há necessidade de um garantismo integral, se esquece da dupla face da proporcionalidade. Você pega o absolutismo monárquico, nós tínhamos o que? O excesso do Estado contra o cidadão, aí veio a escola clássica de Carrara que trouxe, com base na igualdade, liberdade e fraternidade, uma blindagem do indivíduo contra os excessos do Estado . Só que o movimento histórico é pendular, depois nós tivemos a escola positiva com Garofalo, Ferri e Lombroso, que trouxe uma perspectiva de acautelamento da sociedade, protege-se o indivíduo, mas também protege-se a sociedade. Hoje se discute o funcionalismo extremado de Günther Jakobs com o direito penal do inimigo, ou seja, para as novas formas de criminalidade, para essa criminalidade sem rosto, translacional, que está dentro do aparato do próprio Estado e que rompe com aquele modelo do direito penal artesanal do passado.

Será que nós temos um arcabouço legislativo em condições de enfrentar as novas formas de criminalidade? Essa indagação é que precisa ser feita e infelizmente os parlamentares não ouvem as pessoas envolvidas nesse mecanismo de funcionamento da Justiça Penal. Penso que é necessário respeitar as garantias individuais, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, só que o legislador constituinte ficou com os olhos colocados no retrovisor, nos porões da ditadura, o que foi importante historicamente. No entanto, precisamos também colocar os olhos no parabrisa e analisar uma criminalidade que não é a mesma do passado. Hoje, precisamos de instituições fortes, com mecanismos e ferramentas para o enfrentamento dessas novas formas de criminalidade. Infelizmente, os parlamentares são abastecidos com uma produção doutrinária, acadêmica e científica que só contempla o lado do acusado, esquecendo-se da sociedade e da vítima.


Fonte: MPE/MT