Supremo Tribunal Federal (STF)

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Nélson HUNGRIA

"Ciência penal não é só interpretação hierática da lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação de seu espírito e a compreensão de seu escopo para ajustá-lo a fatos humanos, a almas humanas, a episódios do espetáculo dramático da vida." (Hungria)

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Mudanças no CPP podem contribuir para aumento da impunidade, alerta promotor de Justiça


Por CLÊNIA GORETTH
Sexta, 08 de julho de 2011, 14h51

A fungibilidade das cautelares e a dificuldade para se decretar a prisão preventiva, estabelecidas na Lei 12.403, que altera o Código de Processo Penal, foram apontadas pelo promotor de Justiça Antônio Sérgio Cordeiro Piedade, como os aspectos mais preocupantes da nova legislação. Segundo ele, ao contrário do que tem sido propagado à opinião pública, a lei não estabelece condições e capacidade técnica para solução dos problemas relacionados à criminalidade.

“Ao estabelecer possibilidades de aplicação de medidas cautelares ao invés da prisão preventiva, o legislador não preservou o garantismo integral. Somente pensaram no acusado e não na vítima e na sociedade. O princípio da proporcionalidade foi pensado apenas enquanto proibição de excesso”, ressaltou Piedade.

Nesta entrevista, o promotor de Justiça apresenta as principais alterações contempladas na lei e comenta sobre as expectativas em relação à nova legislação Antônio Sérgio Cordeiro Piedade atua no Tribunal do Júri em Cuiabá, desde 2006 Possui mestrado e é doutorando em Direito Penal pela PUC/SP.

IMPRENSA: Quais foram as principais alterações contempladas na Lei 12.403?

PIEDADE: A lei traz novas regras no tocante a prisão, medidas cautelares e liberdade provisória. Ela prevê uma série de medidas cautelares e traz a possibilidade de o juiz ao invés de decretar a prisão preventiva, aplicar determinadas medidas cautelares diversas da prisão. Entre elas, estão o comparecimento periódico em juízo no prazo e condições fixadas pelo juiz para justificar as suas atividades; a proibição de frequentar determinados locais; proibição de manter contato com determinadas pessoas; proibição de ausentar-se da comarca; recolhimento domiciliar no período noturno; suspensão do exercício de função pública ou atividade de natureza econômica e financeira; internação provisória no caso do inimputável e semi- imputável, que é novidade. Nós tínhamos a medida de segurança só em caráter definitivo e não em caráter provisório, além da monitoração eletrônica .

IMPRENSA: Qual a avaliação que o senhor faz?

PIEDADE: O grande problema da lei é o paradoxal descompasso entre a criminalidade que avança e a repressão que recua. Alguns institutos estabelecidos já são utilizados na suspensão condicional da pena, no sursi processual previsto na Lei 9.099/95, no livramento condicional e nas penas alternativas. O grande problema que nós questionamos é o fato do Estado não ter estrutura para fiscalização dessas medidas cautelares diversas da prisão e o receio que temos é de que essas medidas se transformem em mecanismo de impunidade velada, silenciosa. Não queremos que o indivíduo cumpra pena antes da sentença penal condenatória em trânsito em julgado, mas em algumas situações é necessário uma prisão processual, uma prisão cautelar, uma prisão preventiva.

IMPRENSA: E a prisão em flagrante?

PIEDADE: Hoje, a prisão em flagrante não mantém o indivíduo preso por si só. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deve fazer uma análise da legalidade do flagrante. Caso não tenha sido expedida a nota de culpa, a ciência das garantias constitucionais, se o flagrante foi preparado ou forjado, o juiz relaxa essa prisão em flagrante. Quando a prisão em flagrante for regular, atendendo os requisitos extrínsecos e intrínsecos, o juiz avalia a necessidade de decretar a prisão preventiva, ou seja, ele deve converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, sendo que o flagrante não tem mais o condão de prender por si só. Isso quando presente os requisitos do artigo 312 do CPP. E quando for o caso, se ausentes os requisitos, ele concede a liberdade provisória ao indivíduo.

IMPRENSA: Quais são as outras limitações para a prisão preventiva?

PIEDADE: Além da limitação do flagrante, hoje para o juiz decretar uma prisão preventiva ele deve analisar o artigo 313 do CPP, somente podendo decretá-la quando for crime doloso punível com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos. Acabam ficando fora deste rol o furto, a receptação, quadrilha ou bando, coação no curso do processo, alguns crimes de preconceito e isso traz um problema muito sério. Imagine o indivíduo que tem vários delitos de furto ou que esteja envolvido no esquema de receptação, com ligações com o crime organizado, ou ainda, uma coação no curso do processo, onde uma testemunha imprecindível, para a elucidação de um crime de homicídio é ameaçada.

Nestes casos, o juiz está de mãos atadas para decretar a prisão preventiva e com certeza haverá prejuízo na produção probatória e para garantia da ordem pública. Ela somente poderá ser concretizada se o réu for reincidente, mas a reincidência significa o cometimento de um delito após o trânsito em julgado do primeiro delito. Ou seja, se o indivíduo ostentar péssimos antecedentes, ainda assim, não há como o juiz decretar a prisão preventiva.


IMPRENSA: E nos casos de violência doméstica e familiar?

PIEDADE: Quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou alguma pessoa deficiente, há possibilidade de decretar a prisão para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. A lei criou também a prisão domiciliar, que substitui a prisão preventiva nas seguintes situações: quando o agente for maior de 80 anos; extremamente debilitado por doença grave ou quando o indivíduo seja imprescindível aos cuidados especiais de uma pessoa menor de seis anos de idade ou com deficiência ou a gestante a partir do sétimo mês ou quando a gravidez for de alto risco. Agora, é necessário a existência de prova idônea para que ocorram essas substituições.

IMPRENSA: A lei trouxe alterações em relação ao pagamento de fianças?

PIEDADE: No tocante as fianças, no delito leve era possível a liberdade provisória com pagamento de fiança e no delito grave você conseguia liberdade provisória sem fiança. De acordo com o artigo 323, os crimes com a pena mínima até dois anos eram afiançáveis e com pena mínima acima de dois anos eram inafiançáveis. Hoje, o delegado também pode conceder a liberdade provisória com fiança nos casos em que pena máxima não seja superior a quatro anos. Ou seja, aumentou a gama de possibilidade para que o delegado conceda fiança. Além disso, atualmente não temos mais aquela limitação da fiança como tínhamos antes. Só não se concede fiança nos crimes de racismo, tortura, tráfico de entorpecentes, drogas afins, terrorismo e nos crimes definidos como hediondos e naqueles cometidos com grupos armados. Essa questão cria um problema na lei, pois no delitos elencados como graves pelo legislador constituinte, o indivíduo obtém uma liberdade provisória quando não estiver presentes os requisitos, sem fiança, ao passo que nos outros delitos se concede uma liberdade provisória com fiança. Então deveria o legislador constituinte, além de tornar inafiançável esses delitos, ter vedado a liberdade provisória no curso da lide penal, pois assim teríamos proporcionalidade . Além disso, nós tivemos uma alteração no valor da fiança, que foi elevado a um patamar mais alto.

IMPRENSA: Na sua avaliação, quais seriam os reflexos mais imediatos para a sociedade?

PIEDADE: Essa fungibilidade das cautelares, a dificuldade de prisão com medidas inócuas e essa restrição para a decretação da prisão preventiva vão trazer um risco muito grande para a sociedade. Até porque, teremos a concessão de várias liberdades provisórias. Ou seja, o Estado não dota o sistema prisional de condições, com penitenciárias, com cadeias públicas, e arruma mecanismos para limpar a população carcerária, esquecendo-se da necessidade de se dar uma resposta eficaz à sociedade. Hoje, em virtude dos institutos despenalizadores já existentes, fica preso somente o indivíduo que tenha cometido delito com violência ou grave ameaça ou delito grave. Só tem ficado preso o indivíduo que comete crime de estupro, homicídio, roubo e latrocínio. O bem jurídico de alguns delitos graves, com lesividade social, ficarão sem uma resposta por parte do Estado.

IMPRENSA: A lei trouxe algum ponto positivo?

PIEDADE: Um ponto importante que eu vejo na lei é a criação de um cadastro de mandados de prisão preventiva que será mantido pelo Conselho Nacional de Justiça. Com isso, qualquer agente poderá cumprir o mandado de prisão que estará registrado no CNJ, ainda que fora da competência territorial do juiz que expediu. Na verdade, somente o tempo dirá se a lei foi efetiva e positiva. Agora o que não se deve é criar expectativa perante a opinião pública, de que a lei vai resolver os problemas da violência e da criminalidade, pois não vai. Sabemos que ela traz em sua essência algumas questões atécnicas.

IMPRENSA: Quais foram os argumentos utilizados pelos legisladores para promoverem tais alterações?

PIEDADE: Hoje há uma ideologia muito clara no direito penal e no processo penal que caminha nessa onda de se hipervalorizar o princípio da presunção da inocência, esquecendo-se de outros princípios, notadamente o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente. Se esquece que há necessidade de um garantismo integral, se esquece da dupla face da proporcionalidade. Você pega o absolutismo monárquico, nós tínhamos o que? O excesso do Estado contra o cidadão, aí veio a escola clássica de Carrara que trouxe, com base na igualdade, liberdade e fraternidade, uma blindagem do indivíduo contra os excessos do Estado . Só que o movimento histórico é pendular, depois nós tivemos a escola positiva com Garofalo, Ferri e Lombroso, que trouxe uma perspectiva de acautelamento da sociedade, protege-se o indivíduo, mas também protege-se a sociedade. Hoje se discute o funcionalismo extremado de Günther Jakobs com o direito penal do inimigo, ou seja, para as novas formas de criminalidade, para essa criminalidade sem rosto, translacional, que está dentro do aparato do próprio Estado e que rompe com aquele modelo do direito penal artesanal do passado.

Será que nós temos um arcabouço legislativo em condições de enfrentar as novas formas de criminalidade? Essa indagação é que precisa ser feita e infelizmente os parlamentares não ouvem as pessoas envolvidas nesse mecanismo de funcionamento da Justiça Penal. Penso que é necessário respeitar as garantias individuais, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, só que o legislador constituinte ficou com os olhos colocados no retrovisor, nos porões da ditadura, o que foi importante historicamente. No entanto, precisamos também colocar os olhos no parabrisa e analisar uma criminalidade que não é a mesma do passado. Hoje, precisamos de instituições fortes, com mecanismos e ferramentas para o enfrentamento dessas novas formas de criminalidade. Infelizmente, os parlamentares são abastecidos com uma produção doutrinária, acadêmica e científica que só contempla o lado do acusado, esquecendo-se da sociedade e da vítima.


Fonte: MPE/MT

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