por Conceição Lemes
Nesta segunda-feira 23, o julgamento da Ação Penal 470, o chamado
mensalão entrou na nona semana. Muitos juristas o acompanham com
preocupação. Alegam que princípios de respeito às garantias
fundamentais, como “o ônus da prova cabe à acusação” e “não se pode
condenar alguém com base em presunções”, estariam sendo deixados de
lado.
“A Ação Penal 470 ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o
Poder Judiciário. O risco da tentação populista é que passe a produzir
decisões casuísticas, para atender às expectativas do que é
vendido pelos meios de comunicação como opinião pública”, observa Rubens
Casara. “Isso é grave, pois princípios e teorias forjados durante a
caminhada da Humanidade acabam esquecidos ou afastados para a produção
de decisões direcionadas a dar essa resposta simbólica à sociedade.”
Esse risco aumenta quando as decisões casuísticas são produzidas pela
maior Corte de Justiça do Brasil, como na Ação Penal 470, embora não
sejam exclusividade dela.
“Acaba virando jurisprudência, pois as cortes inferiores tendem a
reproduzí-las”, prossegue Casara. “Esse fenômeno o professor e ministro
da Corte Suprema da Argentina Raul Zafaroni chama de comodismo crônico.”
“Ao se espalharem por todo o Judiciário, as teses do STF na Ação
Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns”, adverte Casara. “São
os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que
têm posses e condena os sem condição financeira.”
Rubens Casara é juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro e
professor de Direito Penal da Faculdade de Direito Ibmec/RJ. Porém,
nesta entrevista ao Viomundo, ele fala a partir de sua percepção como pesquisador do autoritarismo no sistema de justiça criminal.
Segue a íntegra da nossa entrevista:
Viomundo – Qual a sua percepção do julgamento da Ação Penal 470 até o momento?
Rubens Casara – Antes, um parêntese. O Estatuto da Magistratura, que é uma lei cunhada em período autoritário, impede que os juízes se manifestem sobre casos em julgamento. Portanto, falo em tese, em especial a partir do que tenho observado na mídia, em minhas pesquisas e como professor de Direito Processual Penal.
Rubens Casara – Antes, um parêntese. O Estatuto da Magistratura, que é uma lei cunhada em período autoritário, impede que os juízes se manifestem sobre casos em julgamento. Portanto, falo em tese, em especial a partir do que tenho observado na mídia, em minhas pesquisas e como professor de Direito Processual Penal.
Sobre a sua pergunta, a minha percepção é de que a Ação Penal 470,
que a grande mídia chama de “julgamento do mensalão”, ilustra bem a
encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário.
De um lado, sua origem aristocrática; um poder conservador, distante
do povo, comprometido com quem detém o poder e o capital, e que
historicamente sempre foi utilizado para manutenção do status quo,
ou seja, como obstáculo à transformação social. Não se pode esquecer
que, para parcela considerável dos que sempre detiveram o poder
econômico e político, o chamado “caso do mensalão” passou a ser
encarado como espécie de vingança pelas derrotas eleitorais impostas
pelo Partido dos Trabalhadores.
De outro lado, uma tendência que tem sido chamada de “tentação
populista”. Ela se traduz em decisões que buscam agradar a opinião
pública, que muitas vezes não passa da opinião publicada pelas grandes
corporações que controlam os principais meios de comunicação de massa.
Agora, a tensão entre a origem aristocrática e essa tendência
populista está presente em vários julgamentos e não só na Ação Penal nº
470. De igual sorte, existem no seio do Poder Judiciário muitos
conflitos, que por vezes permanecem velados.
Enfim, a magistratura é plural, diversas ideologias se fazem
presentes. Existem, por exemplo, magistrados que atuam a partir de uma
epistemologia e de um instrumental autoritário e outros que adotam
posturas e modelos adequados à democracia.
Viomundo — Qual o risco dessa tentação populista?
Rubens Casara – É que as decisões passem a ser produzidas ad hoc.
Viomundo – O que significa?
Rubens Casara – São decisões casuísticas, formuladas para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação de massa como opinião pública. Quando isso acontece é grave, pois princípios e teorias que existem para assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais, que são conquistas de todos, forjados durante a caminhada da Humanidade, acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar respostas simbólicas à sociedade.
Rubens Casara – São decisões casuísticas, formuladas para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação de massa como opinião pública. Quando isso acontece é grave, pois princípios e teorias que existem para assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais, que são conquistas de todos, forjados durante a caminhada da Humanidade, acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar respostas simbólicas à sociedade.
Os direitos e garantias fundamentais sempre foram trunfos contra
maiorias de ocasião, limites à opressão estatal, o que, em última
análise, caracteriza o Estado Democrático de Direito. Só há democracia,
em seu sentido substancial, se os direitos e garantias fundamentais são
respeitados. Decisões judiciais que afastam, relativizam ou violam os
direitos e garantias fundamentais corporificam, portanto, sérias ameaças
ao Estado Democrático de Direito.
Viomundo — O que a Ação Penal 470 vai representar mais adiante?
Rubens Casara – Como toda decisão do Supremo
Tribunal Federal, a tendência é de que as teses acolhidas durante esse
julgamento passem a influenciar a jurisprudência de todos os órgãos do
Poder Judiciário. Essa jurisprudência é o que será chamado de legado
jurídico desse julgamento.
Se, como sustentam alguns, a Ação Penal nº 470 é um “julgamento de
exceção”, uma decisão casuística produzida para agradar parcela da
sociedade brasileira, em detrimento de direitos e garantias que
normalmente seriam reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, o risco à
democracia é muito grande, uma vez que se está diante de um ato, de
ampla repercussão, produzido pela maior Corte de Justiça do Brasil, o
Supremo Tribunal Federal (STF).
Viomundo — Por quê?
Rubens Casara — Porque há uma tendência de
reprodução, pelas instâncias inferiores, das decisões que são produzidas
no Supremo Tribunal Federal. A esse fenômeno, típico da burocratização
judicial, o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina Raúl
Zaffaroni chama de “comodismo crônico”.
Explico: a melhor maneira de se fazer uma carreira rápida no
Judiciário é não contrariar a opinião daqueles que têm o poder de anular
ou reformar as suas decisões. Os juízes reproduzem as decisões dos seus
tribunais e dos tribunais superiores para não terem dores de cabeça na
carreira, serem aceitos na classe e conseguirem promoções.
Assim, se, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotar as teses da
“inversão do ônus da prova em matéria penal” ou da “possibilidade de
condenação a partir de presunções contrárias aos réus”, estaremos dando
passos vigorosos em direção ao Estado Penal.
Por quê? Porque essas teses estão em franca oposição ao princípio
constitucional da presunção de inocência, e o Supremo deixará de atuar
como garantidor dos direitos e garantias fundamentais.
Se, de fato, isso acontecer, essas teses vão ser reproduzidas e
acolhidas em outros casos a serem julgados por diversos juízes e
tribunas brasileiros. A porta para os decisionismos e as perversões
inquisitoriais estará aberta.
Viomundo — Isso significa que as teses aceitas pelo STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns?
Rubens Casara — Com certeza. São os ‘clientes’
preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e
condena os sem condição financeira.
Viomundo – Em função do julgamento, juristas têm usado muito a expressão “atos de ofício”. O que significa exatamente?
Rubens Casara – Atos de ofício do juiz são os
produzidos sem a provocação de qualquer das partes. Eles se originam da
tradição inquisitorial. No sistema processual inquisitivo, o juiz
acusava, produzia as provas e, depois, também julgava a pessoa a quem
ele já tinha atribuído a prática de um delito.
E qual é o risco dessa atuação de ofício? O fenômeno que o professor
italiano Franco Cordero chama de “primado da hipótese sobre fato”.
O que é esse primado da hipótese sobre o fato? O juiz assume a
hipótese da acusação como verdadeira e passa o processo tentando
demonstrar que está correto. Essa atuação de ofício traduz uma
antecipação de seu julgamento, consubstanciada na aceitação da hipótese a
partir da qual orienta a sua busca.
O problema é que, ao partir de uma hipótese falsa, o julgador que
adota essa postura inquisitorial, não raro, chega a uma conclusão falsa,
mas que ele acredita ser verdadeira, mais precisamente, chega a uma
“verdade” que ele construiu, a partir do senso comum ou de distorções,
por vezes inconscientes, do próprio conjunto probatório.
Isso compromete a imparcialidade, ou seja, viola a equidistância que o
julgador deve manter das versões postas pelas partes. Isso acaba por
levar ao que Cordero chamou de “quadro mental paranoico”, já que o juiz
decide antes, ao assumir como verdadeira a hipótese da acusação, e,
depois, sai em busca de material probatório para “confirmar” essa sua
versão.
Viomundo – É um risco da Ação Penal 470?
Rubens Casara – É um risco de todos os processos nos
quais o juiz quer assumir o protagonismo probatório. Ele pratica atos
de ofício na tentativa de demonstrar a veracidade da hipótese que
aceitou como verdadeira. Não comprovar essa versão significa fracassar e
ninguém gosta de fracassar.
Há uma discussão muito grande sobre essa questão na doutrina
brasileira. Há quem defenda a possibilidade do juiz produzir provas de
ofício, mas há excelentes autores que dizem que não, que a gestão da
prova deve permanecer com as partes.
A inércia do juiz seria, então, uma garantia de sua imparcialidade.
Eu prefiro essa segunda corrente que defende que o juiz, na medida do
possível, deve ficar equidistante das versões das partes. Ele deve
receber as provas da acusação e da defesa, para, no final, julgar a
partir do conjunto probatório produzido dialeticamente pelas partes.
Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa estaria assumindo o protagonismo probatório?
Rubens Casara – Na atuação do ministro Joaquim
Barbosa, que vem dos quadros do Ministério Público, órgão
constitucionalmente encarregado de formular hipóteses e produzir provas
que a confirmem, muitos enxergam essa tendência inquisitorial.
Confesso que não estudei a fundo as decisões desse ministro,
professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que será o futuro
presidente do Supremo Tribunal Federal.
Para além do que a mídia noticia, não conheço a atuação do Ministro Joaquim Barbosa.
Veja bem. Existem leis infraconstitucionais que autorizam a produção
probatória pelo juiz. A questão é saber se essas leis são adequadas ou
não à Constituição da República. Uma lei infraconstitucional contrária à
Constituição é imprestável e não deve ser aplicada.
O ideal, portanto, é o modelo em que cabe ao juiz julgar, ao acusador
formular e provar a acusação e ao defensor a missão de defender o
acusado. O ideal é que o juiz não participe da produção probatória. O
ato de produzir provas é inerente à atividade de acusar e de defender.
Na verdade, um ônus de quem formula a acusação, porque no processo penal
brasileiro a carga probatória é toda do acusador. A defesa não precisa
provar nada, desde que a acusação fracasse na sua missão de comprovar os
fatos que constituem a acusação.
No modelo brasileiro, o ônus da prova – aquele que tem o dever de
fazer prova e vai arcar com as conseqüências de não provar – é da
acusação. Se o acusador não consegue provar sua hipótese, o réu tem de
ser absolvido. É a dimensão probatória do princípio da presunção de
inocência, o que se expressa na máxima in dubio pro reo.
Então, o juiz que assume o protagonismo probatório, o
juiz-inquisidor, é uma figura historicamente vinculada ao modelo
inquisitivo, que não é a opção constitucional feita em 1988 nem a da
maioria dos Estados democráticos.
Viomundo – O modelo inquisitorial surgiu quando?
Rubens Casara – Do ponto de vista histórico, ele é
posterior ao modelo acusatório que já existia no regime ateniense. O
sistema inquisitivo surge no século XIII e se torna hegemônico na Europa
continental até o século XVIII, momento em que tem início a sua
decadência. Curioso notar que o sistema inquisitivo nasce em uma quadra
histórica na qual se busca o fortalecimento do Estado, mas ainda hoje é
possível perceber sintomas desse sistema nas mais diversas legislações.
Viomundo – No julgamento do AP 470, tem se falado em inversão
do ônus da prova, flexibilização de conceitos jurídicos, condenação a
partir de presunções, indícios… Como é que fica a situação, professor?
Rubens Casara — Indício é uma prova indireta.
Indícios são fatos efetivamente provados que permitem, por dedução, a
certeza acerca de outro fato que se quer provar. No nosso modelo
processual, é possível uma condenação com base em indícios, desde que
eles sejam capazes de demonstrar cabalmente a ocorrência dos fatos
descritos na denúncia. Esse não é o problema.
Por outro lado, os demais fenômenos que você menciona representam
sérios riscos a uma concepção minimamente democrática de justiça penal,
conforme já mencionei. Da mesma maneira, a possibilidade de uma decisão ad hoc,
voltada à satisfação dos meios de comunicação de massa e de maiorias de
ocasião forjadas na desinformação, representa um risco ao Estado de
Direito.
Por quê? Porque o Poder Judiciário tem como sua principal
característica o fato de ser contramajoritário. Ou seja, ao contrário do
Legislativo e do Executivo, que dependem da votação popular, o
Judiciário tem o dever de julgar contra as maiorias, desde que isso seja
necessário para preservar os direitos fundamentais das minorias ou de
um único cidadão. Existem limites ao exercício do poder que, mesmo
impopulares, devem ser respeitados.
Isso significa que se, para respeitar os direitos fundamentais do
Fernandinho Beira-Mar ou do José Dirceu, o magistrado tiver que
desagradar toda a opinião pública, ele tem que fazer isso. O Judiciário
é, ou deveria ser o garantidor dos direitos fundamentais, dos direitos
inerentes à condição humana.
Sempre que o Judiciário cede àquilo que, no início, chamei de
“tentação populista”, ele se aproxima da atuação do Executivo e do
Legislativo e, portanto, torna-se desnecessário. O Judiciário só se
justifica para assegurar a concretização do projeto constitucional e,
para tanto, deve, ou deveria, atuar como garantia dos direitos
fundamentais de cada indivíduo, criminosos ou não, inclusive aqueles
selecionados pela grande mídia para figurar como inimigos públicos da
sociedade.
Viomundo – Por exemplo…
Rubens Casara — Vamos imaginar uma sociedade racista. Se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser racistas.
Numa sociedade sexista, se o Poder Judiciário não for
contramajoritário, as decisões vão ser sexistas. Numa sociedade
homofóbica, as decisões vão ser homofóbicas…Cabe ao Judiciário impor limites aos desejos e perversões das maiorias.
Acho importante também frisar que os juízes, como todo mundo, estão
inseridos em uma tradição que acaba por condicionar suas decisões. O
problema no Brasil é que essa tradição é extremamente autoritária. As
pessoas recorrem ao sistema de justiça criminal para resolver os mais
diversos problemas. Acreditam no uso da força para solucioná-los.
Problemas sociais ou políticos, por exemplo, são desqualificados,
descontextualizados e redefinidos como se fossem meros casos de polícia a
serem resolvidos no sistema de justiça criminal.
A sociedade brasileira é autoritária. A ausência de rupturas
históricas talvez explique porque ainda hoje práticas típicas da
ditadura, como a relativização de direitos fundamentais, são
naturalizadas. E essa natureza autoritária acaba repercutindo em todas
as decisões judiciais — da primeira instância à Suprema Corte.
Viomundo – O ônus da prova cabe à acusação…
Rubens Casara – Nos modelos democráticos!!!
Viomundo – A partir do momento em que o Judiciário inverte esse papel, qual o risco para a sociedade?
Rubens Casara — A inversão do ônus da prova em
matéria penal é um sintoma nítido da ausência de uma cultura democrática
na sociedade brasileira. Em nome de uma maior eficiência dos órgãos
encarregados da repressão penal, da busca por um maior número de
condenações, direitos e garantias previstas na Constituição da República
são negados, e a sociedade brasileira assiste a tudo isso calada
porque se acostumou com o autoritarismo.
A naturalização de posturas autoritárias impede a criação de uma
cultura verdadeiramente democrática, de respeito aos diretos
fundamentais.
Nós, por vezes, aplaudimos atos de autoritarismo. Há quem bata palmas
para condenações desassociadas de um suporte probatório robusto e
confiável, conforme os meios de comunicação de massa têm noticiado.
Há
também quem concorde com a inversão do ônus da prova em matéria penal,
sem perceber que isso representa um risco à própria ideia de democracia
processual.
Viomundo — Por quê?
Rubens Casara — Por que o ônus da prova cabe ao
Ministério Público? Porque o Ministério Público é o
Estado-Administração, a parte que tem as melhores condições de provar as
hipóteses que formula. O acusado é, nessa relação, a parte mais fraca.
Por mais poderoso que o acusado seja, do outro lado está o Estado, o
Leviatã, com sua estrutura e recursos.
Essa é a dimensão probatória do princípio da presunção da inocência.
Se o indivíduo deve ser tratado como se inocente fosse, cabe ao Estado
afastar essa presunção, a única admitida, no Estado de Direito, em
matéria penal.
O sistema processual penal, como instrumento de tutela da liberdade,
permite constatar que ao Estado também não interessa, e não deveria
interessar aos seus agentes, a condenação de um possível inocente, mesmo
diante do risco da absolvição de um culpado. Ao réu, basta a dúvida,
que impõe, por força da Constituição, a absolvição.
Ao adotar o princípio da presunção de inocência e atribuir ao
acusador o ônus de provar a materialidade e a autoria dos delitos que o
Estado pretende punir, o legislador constituinte faz uma opção política
que implica no reconhecimento de que alguns culpados vão acabar
absolvidos, mas que isso é melhor do que condenar pessoas que podem ser
inocentes.
Diante desse quadro, o processo penal funciona e só se legitima como garantia contra a opressão estatal. Assim, se o Estado quer punir quem pratica uma ilegalidade, ele tem
de demonstrar, de forma cabal, respeitados o devido processo legal e os
demais limites éticos e legais, que o acusado praticou um delito.
Não se pode presumir que alguém é culpado, por exemplo, que
determinada pessoa é “o chefe da quadrilha”, a não ser que exista prova
concreta, segura e suficiente da existência e da autoria do crime
narrado na denúncia pelo acusador.
Para alguém ser condenado, o Estado tem de afastar qualquer dúvida
razoável. Do contrário, fica-se muito próximo do existia no modelo
fascista italiano, no nazista alemão e no da extinta União Soviética.
Ninguém pode ser punido pelo que é, por ser antipático ou desagradar aos
detentores do poder, mas somente por aquilo que se demonstra que ele
fez.
Viomundo – Por que a ideia de atribuir o ônus da prova ao Ministério Público, portanto ao Estado?
Rubens Casara — Para preservar o indivíduo da fúria
persecutória do Estado, respeitando-o como sujeito de direitos.
Busca-se também evitar que se onere em demasia a parte mais fraca da
relação processual.
Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega a ocorrência
de um delito, atribuindo-o ao réu. A opção do nosso sistema é de que ao
réu sempre se atribuirá o benefício da dúvida, devendo a outra parte, o
Ministério Público, diante das prerrogativas e poderes que têm,
comprovar o que alegou na denúncia.
No Brasil, nós temos uma visão simplista de achar que só quem
responde a processo criminal é bandido e que “bandido bom é bandido sem
direitos”.
Isso é falso. Tem pessoas com a ficha limpíssima que praticaram uma
enorme quantidade de crimes, enquanto outras, que respondem a vários
processos, são inocentes e podem acabar condenadas. O sistema penal é
seletivo, de todos aqueles que praticam crimes, poucos acabam julgados; e
nem todos que são julgados praticaram crimes.
O desafio é garantir os direitos fundamentais a todos que respondam a
processos criminais, sejam eles inocentes ou culpados. Isso é que nos
faz humanos e qualifica o processo penal como um instrumento racional de
garantia dos direitos. O Estado, durante o processo criminal, não pode
violar direitos ou garantias do acusado, sob pena de perder a
superioridade ética que o distingue dos criminosos.
E se é para desrespeitar os direitos fundamentais, não precisaríamos do processo penal, nem do Judiciário. Bastava prender a pessoa, colocá-la na cadeia, tirando-a do convívio social, sem maiores justificativas. Insisto: o Judiciário existe para garantir os direitos fundamentais de todos.
Viomundo – Diz-se que o Supremo está sendo pressionado até pela mídia no julgamento do mensalão. O que acha?
Rubens Casara – A influência midiática está
intimamente ligada ao que chamei, para utilizar um termo cunhado por
Garapon, de “tentação populista”. O populismo penal, aliás, toda forma
de populismo, incorporado pelos tribunais — eu não estou falando
especificamente da Ação Penal 470 — é um risco para a sociedade.
Agora, é um risco esperado. Numa sociedade do espetáculo não é
estranho que o Judiciário queira chamar atenção para si e reproduzir o
que já acontece em outras esferas, transformando-se num judiciário
espetacular. Cada juiz também quer aparecer bem no espetáculo.
Não causa surpresa, portanto, que o Poder Judiciário, do primeiro
grau até os tribunais superiores procure agradar aos meios de
comunicação de massa através de decisões, ainda que contrárias à
Constituição da República.
Percebe-se que a esquerda tem uma culpa tremenda no atual quadro,
porque nunca deu importância ao Judiciário, sempre o considerou como um
mero instrumento de opressão e de manutenção das estruturas sociais.
Acontece que no Estado Democrático de Direito o Judiciário é
fundamental à garantia dos direitos e à concretização do projeto
constitucional.
E o que fez o Partido dos Trabalhadores em relação ao Poder
Judiciário? Contribuiu para uma composição conservadora do órgão de
cúpula do Poder Judiciário brasileiro.
O exemplo do Supremo Tribunal Federal é emblemático: foram indicados
para ministros, salvo raras exceções, pessoas conservadoras, sem
compromissos com uma visão progressista de Estado, alguns ligados a
setores conservadores da Igreja Católica ou a políticos historicamente
contrários às lutas do próprio Partido dos Trabalhadores.
Em suma, perdeu a rara oportunidade de promover uma verdadeira
revolução democrática no Poder Judiciário brasileiro. Vale registrar,
por oportuno, que os movimentos sociais e os setores mais progressistas
da sociedade civil sequer foram ouvidos por ocasião das escolhas.
Há um mito de que os juízes devem ser neutros. Isso não existe. Sob o
discurso da neutralidade e da técnica, juízes praticam, e sempre
praticaram, atos políticos a partir de suas visões de mundo. A
extradição de Olga Benário, grávida de Anita Prestes, para os nazistas
que a mataram, por exemplo, foi promovida a partir de uma decisão
política travestida da melhor técnica processual no Supremo Tribunal
Federal. Aliás, há um pouco de Eichmann em todos esses magistrados que
se afirmam neutros e meramente técnicos.
Acho que, diante dos últimos acontecimentos, a própria esquerda que
está no governo federal acabará se conscientizando da necessidade de se
pensar o Poder Judiciário, de se criarem mecanismos de efetivo controle
popular e de se promoverem indicações para os tribunais superiores de
pessoas comprometidas com o projeto constitucional de vida digna para
todos, para além dos projetos pessoais de poder.
Fonte: Viomundo
Excelente !
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