Supremo Tribunal Federal (STF)

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Nélson HUNGRIA

"Ciência penal não é só interpretação hierática da lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação de seu espírito e a compreensão de seu escopo para ajustá-lo a fatos humanos, a almas humanas, a episódios do espetáculo dramático da vida." (Hungria)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Lei de Drogas_PARECER (por: Júlio Medeiros)


A Lei de Drogas, ao não admitir a liberdade provisória, o indulto, o sursis, o recurso em liberdade e nem a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos demonstra a existência de uma política criminal de drogas inconsistente, temerária, reprodutora de violência; uma política criminal flexibilizadora dos direitos e das garantias processuais, seletiva e de controle social. Não há adequação constitucional porquanto o art.5º, XLIII, da CF/88 não possui todas estas vedações (fiança, anistia e graça).

Ademais, com as alterações introduzidas pela novel Lei 11.464/07 não resta dúvida de que o juiz poderá conceder ao réu liberdade provisória, fundamentadamente. A possibilidade de progressão de regime, até então vedada e a possibilidade de o réu em crimes hediondos apelar em liberdade são indicativos que corroboram com tal assertiva.

Por outro lado, se a prisão em flagrante for convertida em prisão preventiva, nada obsta, posteriormente, a sua revogação caso desapareça sua necessidade (por ausência de legalidade, homogeneidade ou instrumentalidade). Aliás, a decisão que decreta a prisão preventiva tem o caráter rebus sic stantibus; nesse sentido,
de toda a sorte, seria concedida liberdade ao acusado de tráfico de drogas.

Quem vive num Estado Democrático de Direito não tem outra opção a não ser aceitar, aplaudir e estimular o garantismo penal. Ler BECCARIA ou FERRAJOLI e não concordar com os seus argumentos é muito difícil. E mais: é praticamente impossível ler os textos que defendem o direito penal do inimigo e não ficar assustado com aquela nefasta doutrina, inserida no contexto do movimento da “Lei e Ordem”.

Nos períodos de exceção, todos criticam a política autoritária e ficam, aos quatro ventos, clamando por liberdade, por democracia. Mas, quando cessa o período ditatorial, e o País se reencontra com a democracia e a liberdade, e os nossos constituintes elaboram leis que vêm ao encontro dos anseios libertários, proclamando plena publicidade do processo, paridade absoluta dos direitos e poderes da acusação e da defesa, inviolabilidade do domicílio, a obrigatoriedade de fundamentação judicial, o due process of law, a presunção de inocência, é de todo injustificável e inadmissível venha a justiça – e logo a justiça – a caminhar para o lado oposto, no sentido de retorno à época de propósitos autoritários.

A liberdade é o ponto culminante dos valores que o Direito busca preservar. Os institutos jurídicos, mercê das transformações, ganham características; tantas vezes, tornam-se incompatíveis com a nova ordem,
revelando-se o Processo Penal como verdadeiro “sismógrafo da Constituição”.

O Judiciário é, por isso, convocado para decidir quanto à eficácia de normas que disciplinam relações jurídicas. O tema não se reduz a mera técnica de interpretação. Vai além. Toca a essência do Direito. Especificamente a finalidade do Direito que, insista-se, não pode ser visto como simples esquema formal de leis como sonhou o austríaco Hans KELSEN.

Quanto aos dispositivos legais, o art.2º da Lei 8.072/90, como é de conhecimento comum, veio para regulamentar o inc. XLII, do art.5º da CF, que estabelece: “A lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (...)”.

Como se vê, não consta da vedação constitucional a liberdade provisória e o indulto, apenas a afiançabilidade, anistia e graça. E, ademais, como lição comezinha em Processo Penal tem-se que fiança e liberdade provisória são institutos autônomos; distintos.

A conclusão é simples: se o art.2º da Lei 8.072/90 veio para regulamentar o preceito constitucional do inc. XLII do art.5º da CF, não podia ele proibir além do que foi proibido no texto da Carta Maior. O que, na verdade,
ofende o princípio da proporcionalidade sob a vertente proibição do excesso.

É oportuno lembrar que a liberdade provisória é sempre admitida quando não houver comprovadamente nos autos, a hipótese de imprescindibilidade da decretação da prisão preventiva (v. art.324 do CPP), necessidade esta que não pode ser presumida em lei, haja vista que o periculum libertatis deve ser aferido em cada caso concreto.

Nunca é demais repetir que entre os primados da nossa Constituição estão o direito à liberdade da pessoa humana e da presunção da inocência. A Carta Magna de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais, já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial.

Aliás, a idéia de que tais direitos e garantias devem ter eficácia imediata (art.5º, §1º da CF) ressalta, também, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

Afastar, portanto, sem qualquer exame, a possibilidade da liberdade provisória, como quer o legislador ordinário, apenas considerando a natureza da infração; portanto, em caráter genérico e absoluto para certa tipologia de delitos, sem averiguar a presença dos pressupostos da prisão preventiva, representa, segundo o que se está defendendo, não só uma agressão à Constituição como também retorno ao passado, quando a prisão preventiva obrigatória, de triste memória, vigorava entre nós.

Tal como na “prisão preventiva obrigatória”, o art.44 da Lei nº 11.343/06 presume, a priori, a existência de periculum libertatis; o que está vedado pelo art.5º, LXI da Lex Mater, ao exigir decisão fundamentada da autoridade judiciária competente. Trata-se de uma “indevida solução padronizada” (que transforma o magistrado num autômato) a ser aplicada para quem for preso em flagrante traficando drogas.

Firme na imperiosidade da máxima otimização do controle de constitucionalidade das leis, tem-se que todos os Julgadores, por conseguinte, contam com o impostergável dever de sempre examinar o conteúdo legislativo produzido, antes de dirimir cada um dos conflitos de interesses deduzidos em juízo. A conclusão do juiz, por conseguinte, obrigatoriamente deve se atrelar ao direito fundado na constitucionalidade plena; secundum ius e não
secundum lege.

Esta norma da Lei de Drogas é inconstitucional, pois mesmo em se considerando o tratamento diverso desejado pelo constituinte para esses crimes (inciso XLII do art.5º da CF), não há – nem mesmo poderia haver, porquanto se consubstanciaria em verdadeira contradição constitucional interna – prisão cautelar obrigatória, ante tempus, que impeça, de modo apriorístico e sem considerações para o caso concreto, a concessão de liberdade provisória.

Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços, mas sim na sua totalidade. Uma porção dela não prevalece sobre outra quando a interpretamos. A lógica da Constituição é incindível e sua interpretação está sujeita a determinados limites, sem o que será transformada em prática de subjetivismo.

Além do que, proibindo-se o benefício da liberdade provisória somente para o tráfico de drogas e não para outros delitos elencados na Lei 8.072/90 (alguns até mais graves como, por exemplo, o latrocínio) terminar-se-ia, ao final das contas, ferindo-se o próprio princípio da proporcionalidade, de extração constitucional,
tornando-se o aludido dispositivo “refém de si mesmo”.

De outro modo, não obstante a interdição à liberdade provisória tenha sido, em tese, estabelecida para crimes de suma gravidade, a Constituição não permite a prisão ex lege, sem motivação, a qual viola frontalmente os princípios constitucionais da presunção de inocência, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art.5º, LV, LVII e LXI, da CF).

Essa orientação foi respeitada, inclusive, em relação às recentes reformas no processo penal, haja vista que a revogação dos parágrafos do art.408 do CPP, expressa a inadmissibidade da prisão processual como efeito automático da lei; prisão ex vi legis já não mais deve existir nos dias de hoje.

A questão é saber se, diante da regra geral da liberdade de todos durante o curso processual, estão presentes os requisitos da cautelaridade aptos a, sob os auspícios dos critérios da proporcionalidade e necessidade, legitimar uma prisão, haja vista que discursos de caráter autoritário não têm e não podem ter o condão de, por si só, subjugar o status libertatis sem qualquer fundamentação apega a fatos concretos.

A sociedade, e o réu em particular, precisam saber que razões levaram o Magistrado a exigir tamanho sacrifício como condição indispensável ao eventual resultado útil do processo em caso de condenação. Não existe cautelaridade e muito menos instrumentalidade sem a necessária demonstração do periculum libertatis apto a ensejar a custódia ante tempus.

Trata-se de um dado a ser buscado com os olhos voltados para as circunstâncias que autorizam a prisão preventiva stricto sensu, porquanto esta representa, indiscutivelmente, a pedra de toque de toda e qualquer prisão provisória.

Quanto ao acusado, se a Carta Magna presume sua inocência, enquanto não houver trânsito em julgado da sentença condenatória, não tem lógica, é absurdo, um verdadeiro não-senso, frauda a finalidade da lei e ilude as garantias da liberdade a exigência daquela prisão pelo simples fato de não a lei determinar, abstratamente, que tais crimes são insuscetíveis de liberdade provisória, o que se veda é tão somente a fiança, espécie do gênero.

Haveria uma absurda presunção de perturbação da ordem pública. Essa, aliás, a ratio essendi do referido dispositivo: uma presunção, a priori, da existência do periculum in libertatis, de que, se solto estiver, o acusado perturbará a garantia da ordem pública. Custódia em face da pretensa gravidade do delito, meramente afirmada, não guarda relação com a função cautelar no interesse do processo, e sim, com execução temporã da pena.

Mas, se a Lei Maior presume a inocência, como pode lei infraconstitucional, ou até mesmo o direito pretoriano, invocar presunção contrária àquela? É o Código de Processo Penal que deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, e não o contrário.

Apenas para destacar, o Supremo Tribunal Federal consolidou, no julgamento do HC 84.078 o “direito de recorrer em liberdade” e, quando do julgamento do HC 97.457, permitiu que acusados de homicídio qualificado (crime hediondo assim como o tráfico de drogas) recorressem extraordinariamente em liberdade por incontestável força do princípio da presunção da inocência. Por que, então, agora no âmbito da Lei de Drogas, a presunção de periculosidade do agente deve prevalecer sobre tal princípio constitucional?

Uma norma, cujos termos gerais parecem satisfatoriamente justos e que não suscitam nenhuma objeção, pode, num caso particular, produzir notórias conseqüências injustas. Direito perfeito é somente o das normas individualizadas na sentença.

A Lei 11.464/2007, ao suprimir do artigo 2º, II da Lei 8.072/1990 a vedação à liberdade provisória nos crimes hediondos, apenas adequou a lei infraconstitucional ao texto da Constituição Cidadã, sendo inadmissível a manutenção do acusado no cárcere quando não demonstrados os requisitos autorizadores de sua prisão preventiva. O legislador constitucional se referiu apenas à fiança, espécie de liberdade provisória, mas não o fez em relação às demais espécies, porquanto não abarcou o gênero do instituto.

Assim, o ideal é se buscar o ponto de equilíbrio, verificando se a prisão resguarda a segurança social e a medida não se mostra injusta ou desnecessária, haja vista que a manutenção de uma pessoa na prisão, nos dias atuais, deve ser decidida com a máxima cautela possível, em razão da superlotação de nossos estabelecimentos prisionais e da violência ali reinante.

Ora, se responsáveis existem pela criminalidade, não são apenas os criminosos, mas todos os que (ainda que no desempenho de alguma competência formal bem justificada) não enxergam além da pena e que singelamente silenciam diante da realidade eliminadora de vida, de dignidade, de oportunidade e de igualdade.

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