Por: Rômulo de Andrade Moreira [1]
O
Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski acolheu requerimento
do Procurador-Geral da República (que também errou!) e determinou a baixa dos
autos do Inquérito nº. 3430, que investiga um ex-Senador, para o Tribunal
Regional Federal da 1ª Região em virtude da decisão do Senado pela cassação do
mandato. Erraram ambos!
Ora,
o ex-Senador, agora novamente (e efetivamente) membro do Ministério Público de
Goiás, deve ser processado e julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de
Goiás e não pela Justiça Federal, ainda que haja corréus sob jurisdição da
Justiça Federal. Membro do Ministério Público Estadual tem que ser processado e
julgado perante o Tribunal de Justiça respectivo, salvo nos delitos eleitorais
quando, então, a competência será do Tribunal Regional Eleitoral.
Como
se sabe, um dos critérios determinadores da competência estabelecidos em nosso Código de
Processo Penal é exatamente o da prerrogativa de função, conforme está
estabelecido nos seus arts. 69, VII, 84, 85, 86 e 87. Evidentemente que estas
disposições contidas no código processual têm que ser cotejadas com as normas
constitucionais (seja pela Constituição Federal, seja pelas Constituições dos
Estados). Desde logo, observa-se que a
competência por prerrogativa de função é estabelecida, não em razão da pessoa,
mas em virtude do cargo ou da função[2]
que ela exerce, razão pela qual não fere qualquer princípio constitucional,
como o da igualdade (art. 5º., caput)
ou o que proíbe os juízos ou tribunais de exceção (art. 5º., XXXVII). Aqui,
ninguém é julgado em razão do que é, mas tendo em vista a função que exerce na
sociedade. Como diz Tourinho Filho, enquanto “o privilégio decorre de
benefício à pessoa, a prerrogativa envolve a função. Quando a Constituição
proíbe o ‘foro privilegiado’, ela está vedando o privilégio em razão das
qualidades pessoais, atributos de nascimento... Não é pelo fato de alguém ser
filho ou neto de Barão que deva ser julgado por um juízo especial, como
acontece na Espanha, em que se leva em conta, muitas vezes, a posição social do
agente.”[3]
Efetivamente, a Constituição espanhola estabelece expressamente que “la persona del Rey es inviolable y no está
sujeta a responsabilidad.” (art. 56-3).
Niceto
Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Leveve explicam que “cuando esas leyes o esos enjuiciamentos se instauran no en atención a
la persona en si, sino al cargo o función que desempene, pueden satisfacer una
doble finalidad de justicia: poner a los enjuiciables amparados por el
privilegio a cubierto de persecuciones deducidas a la ligera o impulsadas por
móviles bastardos, y, a la par, rodear de especiales garantias su juzgamiento,
para protegerlo contra las presiones que los supuestos responsables pudiesen
ejercer sobre los órganos jurisdiccionales ordinarios. No se trata, pues, de un
privilegio odioso, sino de una elemental precaución para amparar a un tiempo al
justiciable y la justicia: si en manos de cualquiera estuviese llevar las más
altas magistraturas, sin cortapisa alguna, ante los peldaños inferiores de la
organización judicial, colocándolas, de momento al menos, en una situación
desairada y difícil, bien cabe imaginar el partido que de esa facilidad
excesiva sacarían las malas pasiones.”[4]
No
julgamento do Habeas Corpus nº.
91437 o Supremo Tribunal Federal lembrou a lição do Ministro Victor Nunes Leal de que “a
jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é realmente
instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse
público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com alto grau de
independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com
plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os
tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de
determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual
influência do acusado seja às influências que atuarem contra ele. A presumida
independência do tribunal de superior hierarquia é, pois uma garantia bilateral
– garantia contra e a favor do acusado”.
Também no julgamento da Questão de Ordem levantada no Inquérito nº.
2.010-SP, o Ministro Marco Aurélio salientou que “a prerrogativa de foro não visa beneficiar o cidadão, mas proteger o
cargo ocupado.” O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de
afirmar que “o foro especial por
prerrogativa funcional não é privilégio pessoal do seu detentor, mas garantia
necessária ao pleno exercício de funções públicas, típicas do Estado
Democrático de Direito: é técnica de proteção da pessoa que o detém, em face de
dispositivo da Carta Magna, significando que o titular se submete a
investigação, processo e julgamento por órgão judicial previamente designado,
não se confundindo, de forma alguma, com a idéia de impunidade do agente.”
(STJ – HC 99.773/RJ – 5ª. Turma - Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho).
Diz
o art. 69 deste código que uma das causas determinadoras da competência penal
será a prerrogativa de função. Este dispositivo foi complementado pelos arts. 84 a 87 do mesmo diploma
processual. Como se disse anteriormente é natural que exista este critério
determinador da competência, pois a pessoa que exerce determinado cargo ou
função, evidentemente, deve ser preservada ao responder a um processo criminal,
evitando-se, inclusive, ilegítimas injunções políticas que poderiam gerar
injustiças e perseguições nos respectivos julgamentos.
É
razoável, portanto, que um Juiz de Direito, um Deputado Estadual ou um Promotor
de Justiça seja julgado pelo Tribunal de Justiça do respectivo Estado, em razão
da “necessidade de resguardar a dignidade e a importância para o Estado de
determinados cargos públicos”, na lição de Maria Lúcia Karam. Para ela, não
há “propriamente uma prerrogativa, operando o exercício da função decorrente
do cargo ocupado pela parte como o fator determinante da atribuição da
competência aos órgãos jurisdicionais superiores, não em consideração à pessoa,
mas ao cargo ocupado.”[5]
Pois
bem. O art. 96, III da Constituição Federal estabelece a competência dos
Tribunais de Justiça para processar e julgar os membros do Ministério Público
estadual, ressalvando-se a competência da Justiça Eleitoral (leia-se: dos
Tribunais Regionais Eleitorais). Neste caso, ainda segundo entendimento
jurisprudencial respaldado principalmente no art. 108, I, “a” da Constituição
Federal, mesmo que o delito seja, em tese, da competência da Justiça Comum
Federal, o julgamento será perante o Tribunal de Justiça do Estado onde atue o
autor do fato (JSTJ 46/532), ainda que a infração penal tenha sido praticada em outro Estado da
Federação, pois, a competência pela prerrogativa de função sobrepõe-se, in casu, à territorial.
[1] Rômulo
de Andrade Moreira é
Procurador-Geral de Justiça Adjunto para
Assuntos Jurídicos na Bahia. Foi Assessor Especial
da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro
de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador
da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal
da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação
(Especialização em Direito Processual
Penal e Penal e Direito Público).
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade
de Salamanca/Espanha (Direito Processual
Penal). Especialista
em Processo pela Universidade
Salvador - UNIFACS (Curso então
coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit
Penal, da Associação
Brasileira de Professores
de Ciências Penais
e do Instituto Brasileiro
de Direito Processual. Associado ao Instituto
Brasileiro de Ciências
Criminais – IBCCrim. Integrante, por
quatro vezes, de bancas
examinadoras de concurso público
para ingresso
na carreira do Ministério
Público do Estado
da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm
(BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização
Funcional do Ministério Público da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de
Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em
coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas publicadas pela Editora Juruá, 2010
(Curitiba) e “A Prisão
Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares – Comentários à Lei nº. 12.403/11”, 2011, Porto Alegre: Editora
LexMagister, além de coordenador do
livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, publicado pela
Editora JusPodivm, 2008 (estando no prelo a 2ª. edição). Participante em várias
obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.
[2]
Sobre a distinção entre função, cargo e emprego público conferir Di Pietro,
Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 14a.
ed., 2001, pp. 437 a
440.
[3]
Processo Penal, Vol. II, Saraiva: São Paulo, 24a. ed., 2002, p. 126.
[4]
Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda.,
1945, pp. 222/223.
[5]
Competência no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3a.
ed., 2002, pp. 30/31.
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