"Até
quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de
zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia
sem freio? (...) Ó tempos, ó costumes!"[2]
Em
recentíssima decisão, a Primeira Turma do Supremo
Tribunal Federal reformou seu entendimento para não mais admitir habeas corpus
que tenham por objetivo substituir o Recurso Ordinário em Habeas Corpus.
Segundo o entendimento da Turma, para se questionar uma decisão que denega
pedido de habeas corpus, em instância anterior, o instrumento adequado é o Recurso
Ordinário e não o habeas corpus.
A mudança ocorreu durante o julgamento do
Habeas Corpus (HC) 109956, quando, por maioria de votos, a Turma, acompanhando
o voto do relator do processo, Ministro Marco Aurélio (quem diria...),
considerou inadequado o pedido de habeas corpus de um homem denunciado pela
prática de crime de homicídio qualificado. Segundo o Ministro Marco Aurélio,
relator, há alguns anos o Tribunal passou a aceitar os habeas corpus
substitutivos de recurso ordinário constitucional, mas quando não havia a
sobrecarga de processos que há hoje. A Ministra Rosa Weber acompanhou o voto do
ministro-relator no que chamou de “guinada
de jurisprudência”, por considerar o habeas corpus, em substituição ao recurso
constitucional, um meio processual inadequado. A Ministra Cármen Lúcia Antunes
Rocha e o Ministro Luiz Fux também votaram no sentido do novo entendimento. A
questão foi decidida no julgamento do HC 109956, mas começou a ser discutida
quando a Turma analisou o HC 108715, durante a apresentação de uma questão
preliminar no voto do relator do processo, Ministro Marco Aurélio. Em sua
preliminar, o Ministro defendeu que a Turma não mais admitisse o uso do Habeas
Corpus para substituir o Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Segundo o Ministro
Marco Aurélio “o habeas corpus
substitutivo do recurso ordinário, além de não estar abrangido pela garantia constante
do inciso LXVIII do artigo 5º do Diploma Maior, não existindo sequer previsão
legal, enfraquece este último documento, tornando-o desnecessário no que, nos
artigos 102, inciso II, alínea “a”, e 105, inciso II, alínea “a”, tem-se a
previsão do recurso ordinário constitucional a ser manuseado, em tempo, para o
Supremo, contra decisão proferida por Tribunal Superior indeferindo ordem, e
para o Superior Tribunal de Justiça contra ato de Tribunal Regional Federal e
de Tribunal de Justiça”.
E acrescentou: “o Direito é avesso a sobreposições e impetrar-se novo habeas, embora
para julgamento por tribunal diverso, impugnando pronunciamento em idêntica
medida implica inviabilizar, em detrimento de outras situações em que
requerida, a jurisdição”. No julgamento
desse habeas corpus (108715) o Ministro Luiz Fux lembrou que assim como o
Tribunal já decidiu que não cabe Mandado de Segurança como substituto de
recurso ordinário, assim também deve ser para “não vulgarizar a utilização do habeas corpus”. Fonte: STF.
Pois
é, lamentavelmente, mesmo o “Dom Quixote” do Supremo Tribunal Federal (ou o conhecido
“voto vencido”), deu mais uma vacilada e aceitou tal (inaceitável) “vulgarização na utilização do habeas corpus”
para fechar os olhos a uma (única e eficaz) garantia constitucional que temos para
o direito de locomoção.
Pontes
de Miranda, se vivo, espernearia! Rui Barbosa, pior! Pedro Lessa ficaria
ruborizado... Óbvio que não falarei de João Sem-Terra, nem dos barões ingleses,
pois estes, muito possivelmente, não tinham ideia do bem que faziam àquela
altura para a liberdade humana (Carta Magna , 1215).
É
lamentável como o habeas corpus vem
sendo achincalhado pelos nossos juízes, tribunais e, incrivelmente, pela
Suprema Corte (veja, por exemplo, o esdrúxulo Enunciado 691 da súmula do
Supremo Tribunal Federal).
Desde
logo devemos atentar para a diferença abissal entre as garantias
constitucionais do mandado de segurança e do habeas corpus, tendo em vista a
tutela por ambos visada. Comparar jurisprudência aplicável ao mandado de
segurança com o habeas corpus é olvidar os direitos por elas garantidos.
Como
se sabe, o habeas corpus deve ser
necessariamente conhecido e concedido sempre que alguém sofrer ou se achar
ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por
ilegalidade ou abuso de poder, pois se visa à tutela da liberdade
física, a liberdade
de locomoção do homem:
ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Como já ensinava Pontes
de Miranda, em obra
clássica, é uma ação
preponderantemente mandamental dirigida “contra
quem viola
ou ameaça violar a liberdade de
ir, ficar e vir.”[3]
Para
Celso Ribeiro Bastos “o habeas corpus é inegavelmente a mais
destacada entre
as medidas destinadas a garantir
a liberdade pessoal.
Protege esta no que ela
tem de preliminar ao exercício de todos
os demais direitos
e liberdades. Defende-a na sua manifestação
física, isto
é, no direito de o indivíduo
não poder sofrer constrição na sua liberdade
de se locomover em razão
de violência ou
coação ilegal.”[4]
Aliás,
desde a Reforma Constitucional
de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação
destinada à tutela da liberdade de locomoção,
ao direito de ir,
vir e ficar.
Ademais,
não há falar-se em “sobreposições” quando
se está em jogo a presunção de inocência, que acode a todos nós. Não por menos,
Julian Lopez Masle e Maria Inês Horvitz afirmam que “(...) el principio de inocência no excluye, de plano, la
posibilidad de decretar medidas cautelares de carácter personal durante el
procedimiento. En este sentido, instituiciones como la detención o la prisión
preventiva resultan legitimadas, en principio, siempre que no tengan por
consecuencia anticipar los efectos de la sentencia condenatória sino asegurar
fines del procedimiento”[5]
O problema, no fundo no
fundo, ainda é o nosso Código de Processo Penal (e não só ele, óbvio…). A
propósito, Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho, afirma que “a
questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da
República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal
brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia
malfeita do Codice Rocco de 30, da
Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo
penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de
Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia
nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (...) ”[6]
Afinal de contas,
como já
escreveu Cappelletti, “a conformidade
da lei com
a Constituição é o lastro
causal que
a torna válida
perante todas.”[7]
Devemos interpretar as leis
ordinárias em conformidade
com a Carta
Magna, e não
o contrário! Como
magistralmente escreveu Frederico
Marques, a Constituição Federal “não
só submete o legislador
ordinário a um
regime de estrita
legalidade, como
ainda subordina todo
o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que
é condição de legitimidade
de todo o imperativo
jurídico. A conformidade
da lei com
a Constituição é o lastro
causal que
a torna válida
perante todos.”[8]
James
Goldshimidt[9] já afirmava no clássico
“Problemas Jurídicos e Políticos
del Proceso Penal” que a estrutura
do processo penal
de um país
indica a força de seus
elementos autoritários
e liberais.[10]
Abaixo,
portanto, aos chavões, meramente retóricos e fascistas, tais como “vulgarização na utilização do habeas corpus”.
Evoé
Ministros das Liberdades Públicas!
[1]
Rômulo
de Andrade Moreira é
Procurador-Geral de Justiça Adjunto para
Assuntos Jurídicos na Bahia. Foi Assessor Especial
da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro
de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador
da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal
da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação
(Especialização em Direito Processual
Penal e Penal e Direito Público).
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade
de Salamanca/Espanha (Direito Processual
Penal). Especialista
em Processo pela Universidade
Salvador - UNIFACS (Curso então
coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit
Penal, da Associação
Brasileira de Professores
de Ciências Penais
e do Instituto Brasileiro
de Direito Processual. Associado ao Instituto
Brasileiro de Ciências
Criminais – IBCCrim. Integrante, por
quatro vezes, de bancas
examinadoras de concurso público
para ingresso
na carreira do Ministério
Público do Estado
da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm
(BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização
Funcional do Ministério Público da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de
Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em
coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas publicadas pela Editora Juruá, 2010
(Curitiba) e “A Prisão
Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares – Comentários à Lei nº. 12.403/11”, 2011, Porto Alegre: Editora
LexMagister, além de coordenador do
livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, publicado pela
Editora JusPodivm, 2008 (estando no prelo a 2ª. edição). Participante em várias
obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.
[2] Palavras que Marco Túlio Cícero,
o maior orador romano de todos os tempos (que ascendeu à posição de cônsul,
entre os anos de 64-63 a .C), dirigiu ao seu grande rival na disputa pela mais
alta posição da Magistratura de Roma, Lúcio Sergio Catilina. Certo dia, Cícero
foi ao Senado e disse em frente a Catilina e aos presentes, para que todos
ouvissem, o seguinte: "Até quando, ó
Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de
nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem
freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores
do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem
protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores,
nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista
de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a
conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite
passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que
deliberações foram as tuas. Ó tempos, ó costumes!"
[3]
História e Prática
do Habeas Corpus, Vol. I,
Campinas: Bookseller, 1999, p. 39.
[4]
Comentários à Constituição
do Brasil, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 312.
[5] Derecho Processual Penal Chileno, Tomo I,
Santiago do Chile : Editorial Jurídica de Chile, 2003, p. 83.]
[6]
O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
[7]
Apud José Frederico Marques, in
Elementos de Direito
Processual Penal, Campinas:
Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.
[8]
Elementos de Direito
Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.
[9]
Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca
foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer
aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos.”
(O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 12).
[10]
Apud José Frederico
Marques, in Elementos de Direito Processual Penal,
Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p.
37.
Nenhum comentário:
Postar um comentário