Supremo Tribunal Federal (STF)

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Nélson HUNGRIA

"Ciência penal não é só interpretação hierática da lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação de seu espírito e a compreensão de seu escopo para ajustá-lo a fatos humanos, a almas humanas, a episódios do espetáculo dramático da vida." (Hungria)

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A interpretação da "garantia pública" para fins de decretação da prisão preventiva

Sempre interpretei a garantia da ordem pública o mais
restritamente possível, uma vez que encontro imensas
dificuldades em visualizar o seu caráter instrumental
quando se tem em mente o eventual resultado útil do processo.

Nessa hipótese, entendo que a "potestas coercendi"
do Estado atua, então, não mais para tutelar o processo
condenatório a que está instrumentalmente conexa,
e sim os anseios da sociedade e a credibilidade da justiça.

"Primus icto oculi", nem mesmo o Supremo Tribunal Federal
mostrou-se capaz de fornecer linhas de atuação,
deixando quase ao sabor arbitrário do julgador em cada
caso concreto entender o que é ou não ordem pública.

De tal arte, a ausência de parâmetro faz com que
aflore o uso da fórmula em seu aspecto puramente
retórico, nela podendo ser inserida ou retirada
a hipótese desejada sem que trauma formal algum
seja sentido

Destarte, o clamor público, a intranqüilidade social
e o aumento da criminalidade não são, a meu ver,
suficientes à configuração do "periculum libertatis"; são, pois,
dados genéricos sem qualquer conexão com o fato delituoso
praticado pelo réu, logo, não podem atingir as suas garantias processuais.

Sob outro prisma, o aumento da criminalidade e o
clamor público são pomos da estrutura social vigente,
que se encarrega de os multiplicar nas suas próprias excrescências.

Por conseguinte, não me afigura razoável que tais
elementos – genéricos o suficiente para levar qualquer
cidadão ao carcer ad custodiam – sejam valorados para determinar o encarceramento prematuro, "ante tempus".

Ora, a gravidade do delito, por si só, também não
justifica a imposição da prisão cautelar,
seja porque a lei penal não prevê prisão provisória
automática para nenhuma espécie delitiva - e nem o poderia
porque a Lex Major não permite -,
seja porque não desobriga em caso algum o
atendimento aos requisitos legais estampados no
art.312 da lei Instrumental Penal.

Quanto à intensidade do dolo, referenciado por muitos,
sempre entendi como matéria condizente à aplicação da pena
e nada mais.

Sobre essa problemática, encontrei interessante trecho presente em uma SENTENÇA prolatada pelo juiz Alexandre Morais da Rosa:

(...)

O fato de ser imputada, eventualmente, conduta apenada com reclusão, por si, como antes demonstrado, não pode ser óbice para o deferimento do pedido, em nome de uma difusa ordem pública, até porque, como bem aponta Aury Lopes Jr (Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, v. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 110-111): "Muitas vezes a prisão preventiva vem fundada na cláusula genérica 'garantia da ordem pública', mas tendo como recheio uma argumentação sobre a necessidade de segregação para o 'reestabelecimento da credibilidade das instituições'.

É uma falácia. Nem as instituições são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção. (...)

Noutra dimensão, é preocupante – sob o ponto de vista das conquistas democráticas obtidas – que a crença nas instituições jurídicas dependa da prisão de pessoas. Quando os poderes públicos precisam lançar mão da prisão para legitimar-se, a doença é grave, e anuncia um grave retrocesso para o estado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado.

Na mais das vezes, esse discurso é sintoma de que estamos diante de um juiz 'comprometido com a verdade', ou seja, alguém que, julgando-se do bem (e não se discutem as boas intenções), emprega uma cruzada contra os hereges, abandonado o que há de mais digno da magistratura, que é o papel de garantidor dos direitos fundamentais do imputado. Como muito bem destacou o Min. Eros Grau (HC 95.009-4) 'o combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário). (...)

No que tange à prisão preventiva para em nome da ordem pública sob o argumento de risco de reiteração de delitos, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros. (...)

A prisão para garantia da ordem pública sob o argumento de 'perigo de reiteração' bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o processo, está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisível). Além de inexistir um periculosômetro (tomando emprestada a expressão de ZAFFARONI), é um argumento inquisitório, pois irrefutável.

Como provar que amanhã, se permancer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível como a afirmação de que amanhã eu o praticarei. Trata-se de recusar o papel de juízes videntes, pois ainda não equiparam os foros brasileiros com bolas de cristal..."

Por: Júlio Medeiros.

Fonte: Blog do juiz Alexandre Morais da Rosa.

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