Inquérito Policial – Arquivamento “Ex Officio”
Ordenado por Magistrado – Inadmissibilidade – Crime de Desobediência –
Processamento de Precatório – Atipicidade (Transcrições)
HC
106.124-MC/PR*
RELATOR: Min. Celso de Mello
EMENTA: AÇÃO PENAL PÚBLICA. MONOPÓLIO
CONSTITUCIONAL OUTORGADO AO MINISTÉRIO PÚBLICO (CF,
ART. 129, I). FORMAÇÃO DA “OPINIO DELICTI” NAS AÇÕES
PENAIS PÚBLICAS: JUÍZO PRIVATIVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE
DE ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL OU DE PEÇAS
INFORMATIVAS POR DELIBERAÇÃO JUDICIAL “EX OFFICIO”. NECESSIDADE,
PARA TANTO, DE PROVOCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRECEDENTES.
- Inviável, em nosso sistema normativo, o
arquivamento, “ex officio”, por iniciativa do Poder
Judiciário, de peças informativas e/ou de inquéritos policiais, pois,
tratando-se de delitos perseguíveis mediante ação penal
pública, a proposta de arquivamento só pode emanar,
legítima e exclusivamente, do próprio
Ministério Público.
- Essa prerrogativa do “Parquet”, contudo,
não impede que o magistrado, se eventualmente
vislumbrar ausente a tipicidade penal dos fatos investigados, reconheça
caracterizada situação de injusto constrangimento, tornando-se
conseqüentemente lícita a concessão, “ex officio”, de ordem
de “habeas corpus” em favor daquele submetido a ilegal
coação por parte do Estado (CPP, art. 654, § 2º).
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA SUPOSTAMENTE
PRATICADO POR PREFEITO MUNICIPAL. (DL Nº 201/67, ART. 1º,
XIV). DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. DETERMINAÇÃO
(NÃO ATENDIDA) DE INCLUSÃO, NO ORÇAMENTO DO MUNICÍPIO, DE
VERBA NECESSÁRIA AO PAGAMENTO DE DÉBITO CONSTANTE DE PRECATÓRIO.
DECISÃO QUE, EMBORA EMANADA DE AUTORIDADE JUDICIAL, FOI PROFERIDA
EM SEDE MATERIALMENTE ADMINISTRATIVA.
AUSÊNCIA DE ELEMENTO ESSENCIAL DO TIPO. CONSEQÜENTE
DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL. FALTA DE JUSTA
CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. DOUTRINA.
JURISPRUDÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- Não basta, para efeito de
caracterização típica do delito definido no inciso XIV do art. 1º do
Decreto-lei nº 201/67 – “deixar de cumprir ordem judicial” -, que
exista determinação emanada de autoridade judiciária, pois
se mostra igualmente necessário que o magistrado tenha
proferido decisão em procedimento revestido de natureza
jurisdicional, uma vez que a locução constitucional “causa”
encerra conteúdo específico e possui sentido conceitual
próprio. Precedentes.
- A atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal no
processamento dos precatórios decorre do exercício, por ele,
de função eminentemente administrativa (RTJ
161/796 – RTJ 173/958-960 – RTJ 181/772), não
exercendo, em conseqüência, nesse estrito contexto
procedimental, qualquer parcela de poder jurisdicional.
DECISÃO: Trata-se
de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado
contra decisão que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, acha-se
consubstanciada em acórdão assim ementado:
“PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. INQUÉRITO
PARA APURAÇÃO DE CRIME ATRIBUÍDO A PREFEITO. ARQUIVAMENTO DE
OFÍCIO. INEXISTÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
ESTADUAL. VIOLAÇÃO AO ART. 3º, DA LEI Nº 8.038/1990.
I - Somente o Ministério Público, a
quem, no processo acusatório, pertence a titularidade privativa da persecução
penal, tem a legitimidade para pedir o arquivamento do inquérito
(Precedentes).
II – ‘Incumbe exclusivamente ao ‘Parquet’
avaliar se os elementos de informação de que dispõe são ou não
suficientes para a apresentação da denúncia, entendida esta como
ato-condição de uma bem caracterizada ação penal. Pelo que nenhum inquérito
é de ser arquivado sem o expresso requerimento ministerial público.’
(HC 88589, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 23/03/2007).
III - Destarte, nos termos do art. 3º, da Lei
n 8.038/1990, compete ao Relator determinar o arquivamento do
inquérito ou de peças informativas, somente quando o requerer o Ministério
Público.
IV - Assim, na hipótese, deve ser cassado
o v. acórdão objurgado que, ao deixar de remeter os autos ao titular
privativo da ação penal pública e determinar o arquivamento do inquérito sem
que houvesse manifestação neste sentido, subtraiu ao órgão do ‘Parquet’
a atribuição constitucional de ‘dominus littis’, violando o dispositivo
federal apontado.
Recurso
especial provido.”
(REsp 1.177.681/PR, Rel. Min. FELIX FISCHER - grifei)
Sustenta-se, na presente impetração, a “ausência
de justa causa para a continuação da investigação preliminar”, eis
que se apura, consoante alegado nesta sede processual,
“fato reconhecidamente atípico, gerando injusto
constrangimento ao paciente” (grifei).
Não se desconhece que o monopólio da
titularidade da ação penal pública pertence ao Ministério Público, que a
exerce, com exclusividade, em nome do Estado. Trata-se,
hoje, de atribuição de índole constitucional deferida,
em situação de monopólio jurídico, à instituição do Ministério
Público. A nova ordem normativa instaurada no Brasil, formalmente
plasmada na Constituição da República, outorgou ao “Parquet”,
dentre as múltiplas e relevantes funções institucionais que
lhe são inerentes, a de “promover, privativamente, a ação penal pública,
na forma da lei” (art. 129, I).
Essa cláusula de reserva, pertinente à
titularidade da ação penal pública, apenas acentuou - desta vez no
plano constitucional -a condição de “dominus litis” do
Ministério Público, por ele sempre ostentada no regime anterior, não
obstante as exceções legais então existentes.
Essa regra constitucional (CF, art. 129, I) - consoante
adverte a doutrina (CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS, “Comentários
à Constituição do Brasil”, vol. 2/302, 2001, Saraiva; HUGO NIGRO MAZZILLI,
“Introdução ao Ministério Público”, p. 124, item n. 24, 7ª ed., 2008,
Saraiva, v.g.) – provocou, em face da absoluta supremacia
de que se revestem as normas da Constituição, a imediata derrogação
de diplomas legislativos editados sob a égide do regime anterior
(RTJ 134/369, Rel. Min. CELSO DE MELLO), que deferiam
a titularidade do poder de agir, mediante ação penal pública, dentre
outros, a magistrados e a autoridades policiais.
Em conseqüência do monopólio constitucional
do poder de agir outorgado, ao Ministério Público, em
sede de infrações delituosas perseguíveis mediante ação penal de
iniciativa pública, somente ao “Parquet” – e ao “Parquet”,
apenas – compete a prerrogativa de propor o arquivamento de
quaisquer peças de informação ou de inquérito policial,
sempre que inviável a formação da “opinio delicti”.
Esse entendimento tem o beneplácito de
expressivo magistério doutrinário (FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Processo
Penal”, vol. I/244-245, 11ª ed., 1989, Saraiva; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código
de Processo Penal Comentado”, p. 121/122, 10ª ed., 2011, RT; ALBERTO SILVA
FRANCO e RUI STOCO, “Código de Processo Penal e sua Interpretação
Jurisprudencial”, vol. II/181-184, 2ª ed., 2004, RT; CARLOS FREDERICO
COELHO NOGUEIRA, “Comentários ao Código de Processo Penal”, vol.
I/394-395, 1ª ed., 2002, Edipro; DAMÁSIO DE JESUS, “Código de Processo Penal
Anotado”, p. 39, 23ª ed., 2009, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código
de Processo Penal Interpretado”, p. 116, item n. 17.1, 7ª ed., 2000, Atlas;
EDILSON MOUGENOT BONFIM, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 115, 3ª
ed., 2010, Saraiva; PAULO RANGEL, “Direito Processual Penal”, p. 191,
item n. 3.13, 16ª ed., 2009, Lumen Juris), bem assim da jurisprudência
que esta Suprema Corte firmou na matéria (RTJ 92/910, Rel.
Min. RAFAEL MAYER):
“‘HABEAS CORPUS’. PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO DA
SUPOSTA PARTICIPAÇÃO DE SARGENTO DE POLÍCIA NA PRÁTICA DE ILÍCITOS. ARQUIVAMENTO,
PELO JUÍZO, SEM EXPRESSO REQUERIMENTO MINISTERIAL PÚBLICO.
(...).
1. O inquérito policial é procedimento de investigação que
se destina a apetrechar o Ministério Público (que é o titular da ação
penal) de elementos que lhe permitam exercer de modo eficiente o
poder de formalizar denúncia. Sendo que ele, MP, pode, até
mesmo, prescindir da prévia abertura de inquérito policial para a
propositura da ação penal, se já dispuser de informações suficientes
para esse mister de deflagrar o processo-crime.
2. É por esse motivo que incumbe exclusivamente
ao ‘Parquet’ avaliar se os elementos de informação de que
dispõe são ou não suficientes para a apresentação da denúncia,
entendida esta como ato-condição de uma bem caracterizada ação penal. Pelo
que nenhum inquérito é de ser arquivado sem o expresso
requerimento ministerial público.
.......................................................
5. Ordem denegada.”
(HC 88.589/GO, Rel. Min. AYRES
BRITTO - grifei)
Vê-se, portanto, que se mostra
inviável, em nosso sistema normativo, o arquivamento, “ex
officio”, por iniciativa do Poder Judiciário, de peças informativas e/ou
de inquéritos policiais, pois, tratando-se de delitos
perseguíveis mediante ação penal pública, o ato de arquivamento só
pode ser legitimamente determinado, pela autoridade judiciária, em
face de pedido expresso formulado, em caráter exclusivo,
pelo próprio Ministério Público.
Irrecusável, desse modo, quanto a esse
específico aspecto da matéria, a correção do julgamento emanado
do E. Superior Tribunal de Justiça e que, no caso ora em exame, reconheceu
não ser lícito, ao Poder Judiciário, ordenar o
arquivamento de inquérito policial (ou de peças de informação), sem
prévio requerimento do Ministério Público.
Ocorre, no entanto, que a Defensoria
Pública da União sustenta que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao
dar provimento ao recurso especial interposto pelo Ministério
Público Federal, permitiu que se reabrisse “procedimento
investigativo” em torno de fato alegadamente destituído
de tipicidade penal, aí residindo, segundo enfatizado nesta
impetração, a caracterização de injusto constrangimento ao “status
libertatis” do ora paciente.
Estabelecidas tais premissas, passo a
examinar o pleito cautelar ora formulado pela parte impetrante. E,
ao fazê-lo, observo que os elementos
produzidos nesta sede processual revelam-se suficientes para
justificar, na espécie, o acolhimento do pedido de
liminar, eis que concorrem, no caso, os requisitos autorizadores
da concessão da medida em causa.
É certo, como anteriormente acentuado, que o
inquérito policial não pode ter o seu arquivamento ordenado, “ex
officio”, pelo Poder Judiciário, cuja decisão, nesse tema,
depende de pedido expressamente formulado pelo Ministério Público, nos
casos de delitos suscetíveis de persecução mediante ação
penal de iniciativa pública.
Não obstante tal entendimento, pode, o magistrado,
se eventualmente vislumbrar, em determinado
procedimento persecutório, a ausência de tipicidade penal dos fatos
investigados, reconhecer a configuração de injusto
constrangimento, e, em conseqüência, exercendo o
dever-poder que lhe confere o ordenamento positivo (CPP,
art. 654, § 2º), conceder, “ex officio”, ordem de “habeas
corpus” em favor daquele que sofre ilegal coação por
parte do Estado, consoante tem proclamado tanto
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Pet 3.825-QO/MT,
Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES – RT 527/455, Rel. Min. THOMPSON
FLORES) quanto aquela emanada do E. Superior Tribunal de Justiça
(HC 28.796/SP, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA – RHC 4.311/RJ,
Rel. Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO).
Tal, porém, não sucedeu na espécie, eis
que o Tribunal apontado como coator deixou de exercer a
prerrogativa fundada no art. 654, § 2º, do CPP, muito embora o
fato sob apuração aparentasse desprovido da necessária
adequação típica.
Faço tal afirmação, considerada a circunstância de
que não estaria configurado, no plano da tipicidade
penal, o crime de desobediência objeto da investigação estatal ora
questionada, pois, como se sabe, a atividade desenvolvida pelo
Presidente do Tribunal no processamento dos precatórios decorre do
exercício, por ele, de função eminentemente
administrativa:
“Inquérito. Recurso em sentido estrito. Sentença que
não recebe a denúncia. Ex-Prefeito. Não-pagamento de
precatório. Descumprimento de ordem judicial. Art. 1º,
inciso XIV, segunda parte, do Decreto-Lei nº 201/67.
.......................................................
2. Na linha da firme jurisprudência desta Corte,
os atos praticados por Presidentes de Tribunais no tocante ao processamento
e pagamento de precatório judicial têm natureza administrativa, não
jurisdicional.
3. A expressão
‘ordem judicial’, referida no inciso XIV do art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67, não
deve ser interpretada ‘lato sensu’, isto é, como qualquer ordem dada
por Magistrado, mas, sem dúvida, como uma ordem decorrente, necessariamente,
da atividade jurisdicional do Magistrado, vinculada a sua
competência constitucional de atuar como julgador.
4. Cuidando os autos de eventual
descumprimento de ordem emanada de atividade administrativa do
Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, relativa ao
pagamento de precatório judicial, não está tipificado o crime definido no
art. 1º, inciso XIV, segunda parte, do Decreto-Lei nº 201/67.
5. Recurso em sentido
estrito desprovido.”
(Inq 2.605/SP, Rel. Min. MENEZES DIREITO – grifei)
Observa-se, na espécie, a aparente ausência
de tipicidade penal do comportamento imputado ao paciente, eis que o
preceito primário de incriminação, tal como definido no inciso XIV do
art. 1º do Decreto-lei nº 201/67, supõe, para aperfeiçoar-se, a
existência de ordem proferida em sede jurisdicional
e emanada de autoridade judiciária competente.
É por isso que se tem enfatizado, em diversos
julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, que “(...) a
atribuição do Presidente do Tribunal, ao processar o precatório, não
é sequer jurisdicional. É atividade puramente
administrativa”, pois, consoante então ressaltado,
“A atividade jurisdicional termina com a expedição do precatório (...)”
(RTJ 71/572, 575 - grifei).
Posteriormente, esse mesmo entendimento sobre o
tema em análise veio a ser reiterado em voto proferido pelo
saudoso Ministro RODRIGUES ALCKMIN, que expendeu lúcido magistério
a propósito da matéria em questão (RTJ 80/691):
“A função do Presidente do Tribunal é, no caso, meramente
administrativa. Ele não é Juiz da execução. Juiz da execução é o
Juiz que expede o precatório. Pelo nosso sistema, é o Presidente do Tribunal, a
cuja disposição estão as verbas, quem expede a ordem de pagamento. Encerra-se
a execução com a expedição do precatório. Esta é a função executória.
.......................................................
Não pode, assim, haver conflito de
atribuições, porque compete ao Juiz da execução expedir o precatório.
Essa função é jurisdicional, de execução. Compete ao Presidente do
Tribunal determinar o pagamento: função administrativa de outro
órgão. E ninguém quer invadir a atribuição de outro, para praticar-lhe a
função.
Acontece que o Presidente
do Tribunal, ao examinar formalmente o precatório, foi além da marca;
passou a examinar o mérito do precatório. Terá cometido, como autoridade
administrativa, uma demasia, que não se corrige através de conflito de
jurisdição, nem de atribuição, que não há.”
(grifei)
Esta Suprema Corte - ao rejeitar a
caracterização jurisdicional da atividade do Presidente do Tribunal, em
sede de processamento de precatório - teve o ensejo, uma
vez mais, de enfatizar o caráter materialmente
administrativo desse procedimento, acentuando, também
em voto da lavra do saudoso Min. RODRIGUES ALCKMIN (RTJ
71/574-575), o que se segue:
“(...) Até 1934
os juízes expediam o precatório e se encerrava a fase judicial. A
parte, com o precatório, ia ao Executivo, ao Ministério da Fazenda, solicitar
o pagamento e ficava na dependência de ato do Ministro ou do Presidente
da República, dependendo de solicitação de verba ao Congresso, com a
conseqüência de que se uns recebiam, para outros o pagamento
demorava dez, quinze, vinte anos, numa desigualdade gritante. Daí a
Constituição de 1934 estabelecer o pagamento obedecendo à ordem cronológica.
Surgiu, daí, a necessidade de receber o
Presidente do Tribunal os precatórios e fazer um exame destes, antes
de solicitar a verba para os respectivos pagamentos. A rigor a atividade
do Presidente do Tribunal, nos precatórios, consiste na
solicitação de verba, e, quando a verba está à sua disposição,
na expedição de ordem de pagamento.
Para solicitação de verba, não sendo evidentemente o
Presidente do Tribunal um autômato, cabe um certo exame das formalidades
extrínsecas do precatório.
.......................................................
Mas restringe-se o exame a essas formalidades
extrínsecas e, quando muito, se estende a erro material, a
erro aritmético ou de soma, isto é, àqueles erros que jamais transitam em
julgado e que podem ser corrigidos a qualquer tempo. Rever, porém,
o próprio cálculo já homologado por sentença, com a devida vênia, considero
de todo inadmissível, num processo de precatório, onde se
exerce atividade puramente administrativa. Não é possível que, depois
de transitar em julgado na Primeira Instância, venha a
Subprocuradoria da República ao Tribunal, num processo que não é
jurisdicional, com impugnações, e reabra toda a discussão, o que
tornava inúteis os recursos e implicava em desconhecimento da preclusão e da
coisa julgada formal.
Tenho, assim, que a decisão de
natureza exclusivamente administrativa do Presidente, ao atender
o precatório, já não comportaria recursos de natureza processual.
E por isso, liminarmente, afastaria o conhecimento deste extraordinário. Se
houve erro material no precatório, é claro que a autoridade incumbida de
dar-lhe cumprimento, em sede administrativa, poderia pedir ao signatário dele
que o fizesse corrigir, como o poderia pedir qualquer interessado.
Mas o ofício ou
a carta requisitória de
pagamento não comportam, à evidência, pareceres, debates, decisões
e recursos de natureza jurisdicional.” (grifei)
Vê-se, desse modo, que o Presidente
do Tribunal, ao desempenhar as suas atribuições no processamento
dos precatórios, atua como autoridade administrativa,
não exercendo, em conseqüência, nesse estrito contexto
procedimental, qualquer parcela de poder jurisdicional (PINTO
FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 4/67-68, 1992,
Saraiva).
Assentada, pois, tal premissa - que se sustenta
no reconhecimento da natureza materialmente administrativa que
caracteriza tanto o procedimento quanto a
atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal em tema de precatório
-, torna-se forçoso concluir que as decisões por ele
proferidas com fundamento nessa específica competência apresentam-se
desvestidas de conteúdo jurisdicional, circunstância esta que
descaracteriza, por completo, a ocorrência do
não cumprimento de “ordem judicial” prevista na descrição típica
inscrita no inciso XIV do art. 1º do Decreto-lei nº
201/67.
É importante salientar, neste ponto, que
essa compreensão da matéria – segundo a qual a configuração
típica da conduta definida no inciso XIV do art. 1º do
Decreto-lei nº 201/67 depende, para realizar-se, da
existência de comando revestido de caráter jurisdicional (inocorrente
em sede de mero processamento de precatórios judiciais) – decorre
da própria jurisprudência, amplamente consolidada nesta Corte (Súmula
733/STF), que o Supremo Tribunal Federal firmou no exame do tema em
questão, como o evidenciam os seguintes julgados:
“(...) 2. Recurso extraordinário: descabimento:
natureza administrativa e, não jurisdicional, da decisão
proferida pelo Presidente do Tribunal no processamento de precatório, bem
como da proferida pelo mesmo Tribunal em agravo regimental contra aquela
interposto: precedentes.”
(AI 437.009-AgR/PE, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
- grifei)
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DECISÃO HOMOLOGATÓRIA. PRECATÓRIO.
ATIVIDADE ADMINISTRATIVA.
I. - A atividade do Presidente do Tribunal
de Justiça desenvolvida no processamento de precatório tem natureza
administrativa e não jurisdicional, não se qualificando, assim, como
causa a desafiar o manejo do recurso extraordinário.
II. - Agravo não provido.”
(AI 409.331-AgR/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - grifei)
“Recurso extraordinário. Precatório. Atividade
administrativa do Tribunal. Inexistência de causa como
pressuposto do recurso extraordinário.
- O Plenário desta Corte, ao julgar o AGRRE
213.696, decidiu que a atividade do Presidente do Tribunal no
processamento do precatório não é jurisdicional, mas
administrativa, o mesmo ocorrendo com a decisão da Corte em agravo
regimental contra despacho do Presidente nessa atividade. Inexiste, assim, o
pressuposto do recurso extraordinário que é o da existência de causa decidida
em única ou última instância por órgão do Poder Judiciário no exercício de
função jurisdicional.
Recurso
extraordinário não conhecido.”
(RE 338.849/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES - grifei)
“I - A atividade desenvolvida pelo Presidente do
Tribunal, no
processamento do precatório, não é jurisdicional, mas administrativa.
Também é administrativa a decisão do Tribunal tomada em agravo regimental interposto
contra despacho do Presidente na mencionada atividade. Precedente do
STF: ADIn 1098-SP.
II - O recurso
extraordinário pressupõe a existência de causa decidida em única ou última
instância por órgão do Poder Judiciário no exercício de função jurisdicional.
Proferida a decisão em sede administrativa, não há falar em causa.
Não cabimento do recurso extraordinário.”
(RTJ 173/958-960, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Pleno
- grifei)
“Recurso extraordinário. 2. Alegação de ofensa ao art. 100,
da Constituição Federal. 3. Recurso interposto de decisão referente a
processo de Precatório. Natureza administrativa. 4. ‘Não cabe
recurso extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatórios
já que esta tem natureza administrativa e não jurisdicional’.
Precedentes da Corte. 5. Agravo regimental desprovido.”
(RE 205.182-AgR/PE, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA -
grifei)
“PRECATÓRIO - PROCESSO - NATUREZA. Uma vez expedido o precatório, a
tramitação faz-se no âmbito simplesmente administrativo. Decisão proferida,
ainda que originária de órgão Colegiado do Tribunal de Justiça, confirmando ou
reformando ato do respectivo Presidente, não é impugnável via recurso
extraordinário, por lhe faltar o cunho jurisdicional.”
(RE 215.208-AgR/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)
“PRECATÓRIO - OBJETO. Os preceitos constitucionais direcionam
à liquidação dos débitos da Fazenda. O sistema de execução revelado pelos
precatórios longe fica de implicar a perpetuação da relação jurídica
devedor-credor.
PRECATÓRIO - TRAMITAÇÃO - REGÊNCIA. Observadas as
balizas constitucionais e legais, cabe ao Tribunal, mediante dispositivos
do Regimento, disciplinar a tramitação dos precatórios, a fim de que possam ser
cumpridos.
PRECATÓRIO - TRAMITAÇÃO - CUMPRIMENTO
- ATO DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL - NATUREZA. A ordem
judicial de pagamento (§ 2º do artigo 100 da Constituição Federal), bem
como os demais atos necessários a tal finalidade, concernem ao
campo administrativo e não jurisdicional. A respaldá-la tem-se sempre
uma sentença exeqüenda.
PRECATÓRIO -
VALOR REAL - DISTINÇÃO DE TRATAMENTO. A Carta da República homenageia a igualação dos credores. Com
ela colide norma no sentido da satisfação total do débito apenas quando situado
em certa faixa quantitativa. (...).”
(ADI 1.098/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)
Registre-se, por necessário, que essa
visão do tema é também consagrada na jurisprudência do E.
Superior Tribunal de Justiça, cujos pronunciamentos, a
tal propósito, têm ressaltado que “A função
do Presidente do Tribunal, no processamento do requisitório de pagamento, é
de índole essencialmente administrativa, não abrangendo as
decisões ou recursos de natureza jurisdicional” (REsp 96.847/SP,
Rel. Min. PEÇANHA MARTINS - grifei).
A natureza administrativa de tal decisão mostra-se
relevante no caso presente, pois, dentre os elementos
constitutivos do tipo definido no art. 1º, inciso XIV, do
Decreto-lei nº 201/67, um há que, por específico, impõe
que a ordem judicial não cumprida tenha emergido de uma
causa, vale dizer, de um procedimento de índole
jurisdicional.
Isso significa que não basta, para
efeito de caracterização típica do delito ora em exame, que exista
ordem emanada de autoridade judicial. Mostra-se igualmente necessário
que essa autoridade tenha proferido, no âmbito de uma causa,
decisão revestida de natureza jurisdicional. É que
a locução constitucional “causa”, como se sabe, encerra
um conteúdo específico e possui um sentido conceitual próprio.
Daí o correto magistério de WALDO FAZZIO JÚNIOR (“Responsabilidade
Penal e Político-Administrativa de Prefeitos”, p. 131/132, 2007,
Atlas):
“(...) A
requisição de pagamento de precatório, contida no art. 100 da
Constituição Federal, tem natureza administrativa e não
judicial.
Em outras palavras, os atos do Presidente do
Tribunal nos processos de precatório são de natureza administrativa. Como
ato administrativo está sujeito ao controle pelas vias normais ou
por intermédio da ação de mandado de segurança.
É o que fica demonstrado em
acórdão do STJ, relatado pelo Ministro Felix Fischer,
ao afirmar que
‘consoante entendimento do Pretório
Excelso (AI 287779-SP Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
DJ de 22-6-2006; AI 575298-SP Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de
28-4-2006; RE 220182-SP Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de
15-12-2004; RE 228949-SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de
15-12-2004 etc.; e, inclusive, o teor da Súmula nº
733 STF) e desta Corte (HC 34812-MG, Rel.
Min. Paulo Medina, DJ de 28-2-2005; AgRg no Ag 663976-SP Rel. Min. Luiz
Fux, DJ de 13-2-2006; RMS 19027-RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ
de 10-10-2005 etc.), a requisição de pagamento de
precatório, constante do art. 100 e seus parágrafos da CF, tem
natureza administrativa, e não judicial.
Logo, no caso concreto, não se perfaz o tipo do
art. 1º, XIV, do Decreto-lei nº 201-67, na modalidade ‘deixar de
cumprir ordem judicial’.” (grifei)
Resulta claro, desse modo, que, não
obstante judiciária a autoridade de que emanou o ato descumprido,
ainda assim não se terá por caracterizada, no plano
da tipicidade penal, a conduta prevista no inciso XIV do art. 1º
do Decreto-lei nº 201/67, se a decisão não cumprida
houver sido proferida, como parece suceder na espécie, em sede
estritamente administrativa.
Sendo assim, em face das razões expostas, e
em juízo de estrita delibação, defiro
o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente,
até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”,
o curso do Inquérito Policial nº 2009.04.00.007012-1/PR, ora
em tramitação perante o E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Comunique-se, com urgência, encaminhando-se cópia
da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (REsp
1.177.681/PR), e
ao E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Inquérito Policial
nº 2009.04.00.007012-1/PR).
2. Solicitem-se, ao E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
informações que permitam esclarecer a fase em que se
encontra, presentemente, o procedimento instaurado contra
o ora paciente (Inquérito Policial nº 2009.04.00.007012-1/PR).
Publique-se.
Brasília, 1º de agosto de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
* decisão publicada no DJe de 5.8.2011
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