“Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil”.
1. Prova
O processo destina-se à aplicação do Direito; a aplicação do Direito, de sua parte, depende da existência ou verificação dos fatos aos quais a ordem jurídica alia a produção de um dado efeito jurídico([1]). As provas, por sua vez, têm por função a demonstração da realidade dos fatos, um caminho a ser necessariamente desenvolvido até o juízo final. Como bem resume Germano Marques Silva, a expressão prova tem um tríplice significado:
“A – Prova como atividade probatória: acto ou complexo de actos que tendem a formar a convicção da entidade decidente sobre a existência ou inexistência de uma situação fatual;
B – Prova como resultado: a convicção da entidade decidente formada no processo sobre a existência ou não de uma dada situação de facto;
C – Prova como meio: instrumento probatório para formar aquela convicção”.([2])
2. Princípio da verdade real:
O processo, sabidamente, é o instrumento pelo qual o Estado aplica a jurisdição, consistente numa reconstituição de fatos. Materializa-se na tentativa de reconstrução da verdade com o escopo de se aplicar corretamente o Direito ao caso concreto. A verdade real, cuja busca é a tônica do Processo Penal, somente se atinge por intermédio da prova. Daí avulta a importância desse tema, referido nas Ordenações Filipinas como “o farol que deve guiar o juiz em suas decisões” (Liv. III, Tít. 63) ([3]).
Assim, uma das características mais marcantes do processo penal é a vigência do chamado princípio da verdade real ([4]). Não deve o juiz criminal, por conta de tal princípio, satisfazer-se com a mera verdade formal (aparente) que lhe é exibida pelas partes. Definido o objeto do processo pela acusação e delimitado consequentemente o objeto do julgamento, o julgador deve procurar a reconstrução histórica dos fatos ([5]), buscando, por todos os meios processualmente admissíveis, alcançar a verdade histórica, independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa (art. 156, CPP) ([6]).
Portanto, a posição de inércia, mais freqüente no processo civil, onde vigora a máxima ne procedat ex officio, não se admite no âmbito criminal, isso porque, ao lidar com um dos mais caros direitos da pessoa – o direito à liberdade – deve o Magistrado procurar adequar sua decisão não somente à prova apresentada pelas partes mas, além disso, suprindo eventual omissão dos interessados, pesquisar os fatos, aproximando-os, o mais que possível, da verdade real . Tudo, é evidente, com o cuidado de não perder de vista a imparcialidade, agindo de maneira supletiva e jamais assumindo a posição de parte, acusando ou defendendo.
3. Princípio da liberdade de provas
A produção da prova no processo penal é livre (o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial). Como bem ensina Eugenio Florian, “o princípio da verdade material, que no processo brilha com luz própria e constitui fundamento do sistema probatório e o critério do livre convencimento, que é a alma e o espírito vivificador desse sistema, levam conjuntamente à conclusão de que os meios de prova não podem restringir-se a uma enumeração taxativa e inalterável. Assim manifesta-se em toda sua firmeza o princípio da liberdade dos meios de prova (Das provas, tomo I, p. 223).
A liberdade aqui prevista não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, merecendo limitações. Dentre tais limitações, destaca-se aquela que veda a produção da prova obtida por meios ilícitos, segundo expresso preceito constitucional (art. 5°. LVI, da CF). Ou a prova quanto ao estado das pessoas, para a qual não vigora qualquer liberdade em sua produção, na medida em que deve atentar às restrições estabelecidas na lei civil, conforme se verá abaixo.
4. Restrições à liberdade de provas
No desejo de conter o poder punitivo estatal, o art. 155, caput, proíbe o magistrado sentenciante fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
No Senado houve emenda buscando retirar do dispositivo a expressão “exclusivamente”, sob o argumento de que as informações colhidas na investigação não são provas produzidas de acordo com o contraditório, não devendo sequer ser levadas em consideração pelo juiz criminal. Não foi acolhida pela Câmara. A supressão pretendida faria com que o órgão jurisdicional fosse impedido de considerar qualquer elemento informativo da fase de inquérito. Foi (corretamente) lembrado que, por determinação constitucional, todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, de tal forma que o julgador só deve levar em consideração informações contidas em inquérito policial se o fizer de forma razoável. Deve, portanto, o magistrado explicitar os motivos que o levaram a utilizar o elemento informativo colhido no inquérito policial. Este, por sua vez, não segue mais o antigo paradigma de investigação inquisitória, havendo, atualmente, observância às garantias do acusado no que tange à ampla defesa, sendo, inclusive, assegurado o acesso do advogado aos autos do inquérito.
A inovação em estudo acompanhou copiosa jurisprudência dos nossos Tribunais. A novel Lei, simplesmente, adequou o artigo em comento ao princípio do devido processo legal, estampado na CF/88 (art. 5°, LV), protegendo o cidadão contra a ingerência arbitrária do Estado, proibindo a este exercer o seu direito de punir senão por meio de um processo judicial legítimo, concedendo ao acusado o direito de oferecer resistência, produzir provas e influenciar, positivamente, no convencimento do Julgador.
Fez coro, ainda, ao sistema da livre convicção ou da persuasão racional (ou da verdade real), adotado pelo legislador do código, conforme se depreende de sua Exposição de Motivos, da lavra do Ministro Francisco Campos, que assenta: “todas as provas são relativas: nenhuma terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que a outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não ficará subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material” (item VII). Vê-se aqui, destarte, que o legislador, de um lado, confere ao Juiz a mais ampla liberdade de análise da prova, já que não fica limitado a nenhuma hierarquia previamente estabelecida, julgando segundo sua consciência e conforme a prova constante dos autos. De outra banda, porém, tal liberdade não se confunde com arbítrio e, por isso, criou o legislador uma série de restrições, cujo objetivo é o de impedir o despotismo judicial.
Conclusão: diante do preceito constitucional do contraditório, exige-se que a prova extrajudicial, para ser utilmente oposta ao acusado, venha a reproduzir-se na forja da Justiça ou, ao menos, a receber amparo suficiente na prova da instrução. Não se pode, entretanto, desconsiderar que os elementos amealhados no inquérito policial, apesar de insuficientes, por si sós, para sustentar a condenação, mostram-se hábeis na formação do convencimento do magistrado, pois colhidos na polícia na função de apurar a ilicitude e, quase sempre, com grande proximidade temporal do delito (nesse sentido: TACrim-SP – Rel. Renato Nalini – RJD 28/39).
5. Provas cautelares, não repetíveis ou antecipadas
As provas cautelares, não repetíveis ou antecipadas dispensam reprodução sob o crivo do contraditório. A razão é óbvia: há provas que, por sua própria natureza, não permitem reprodução em Juízo. Nesses casos, embora produzidas extrajudicialmente, pode o juiz basear sua decisão em tais provas. Imagine-se uma perícia realizada em um portão, a fim de apurar a prática de um crime de furto qualificado. Tal exame deverá ser realizado o mais rápido possível, tão logo se der a prática do crime. Não se exigirá, nesse caso, que passado um ano, já em Juízo, nova violação na porta seja feita, para que uma perícia, agora judicial, seja produzida. Tampouco se imporá à vítima o dever de aguardar, durante um ano, um eventual processo criminal para, somente a partir daí, poder efetuar os reparos na porta, como forma de proteger seu patrimônio. Não. A prova válida e eficaz será aquela produzida ainda na fase policial, embora – insistimos – sem contar com as garantias do contraditório e da ampla defesa, exigíveis, apenas, para o processo criminal.
O mesmo ocorrerá em um caso de homicídio. O exame necroscópico a ser sopesado pelo julgador é aquele realizado no âmbito administrativo, ainda durante o inquérito policial. Não se exigirá, decerto, que passados três ou quatro anos da prática do crime, se vá reproduzir a perícia em Juízo, em face, inclusive, do total desaparecimento do material a ser levado a exame.
Mas não é só: imagine-se uma busca e apreensão (inserida, em nosso ordenamento jurídico, no capítulo das provas, a despeito da crítica doutrinária a respeito). Ora, trata-se de prova que possui nítido caráter cautelar e que se esgota em si mesma. Uma vez realizada não há como se reclamar sua reprodução mais adiante, em Juízo. Cumprirá ao juiz, portanto, analisar se a prova, em sua realização e cumprimento, atendeu aos requisitos formais, conferindo-lhe, em seguida, o valor que entender devido. Jamais, porém, pretender sua renovação judicial.
Nesses casos, destarte, a prova, embora produzida extrajudicialmente, terá plena validade e eficácia na formação da convicção do Juiz. Trata-se, porém, de medida excepcional. A regra continua sendo aquela descrita no caput do dispositivo em estudo: a sentença penal deverá vir lastreada na prova produzida em Juízo, revestida dos princípios constitucionais que informam o processo penal.
6. Estado das pessoas
Em relação ao estado das pessoas, o parágrafo único do art. 155 do CPP determina que se deve observar as restrições estabelecidas na lei civil. Nessas hipóteses a intenção é encontrar, com exclusividade, no campo cível, a prova competente, prevalecendo sobre eventual prova criminal produzida em sentido contrário. Assim por exemplo, a existência da violência presumida nos crimes contra a liberdade sexual (art. 224, a, CP), deve ser demonstrada com a juntada da certidão de nascimento da vítima. Também através de tal documento será reduzida ou aumentada a pena (arts. 65, I e 61, II, h, ambos do CP), ou o prazo prescricional em favor do menor de 21 ([7]) ou maior de 70 anos. Também a morte, fator extintivo da punibilidade do réu (art. 107, I, CP), somente pode ser demonstrada por meio da respectiva certidão de óbito (art. 62, CPP) ([8]). E assim, inúmeras outras hipóteses espalhadas na legislação, nas quais a prova civil é indispensável, jamais sendo superada pela prova penal, mesmo ante eventual confissão do réu ou depoimento veraz da vítima ou testemunha.
Esta restrição, para alguns, mostra-se arbitrária, ferindo, inclusive, a garantia da ampla defesa. Não nos parece. Temos, no caso, a previsão do princípio da especialidade, sobrepondo-se à penal, a prova civil, produzida na seara própria.
Fotocópia do documento sem autenticação serve como prova? Apesar de julgados em sentido contrário, o STF já decidiu que a eficácia probante das cópias xerográficas resulta, em princípio, da sua formal autenticação por agente público competente (CPP. Art. 232, parágrafo único). Peças reprográficas não autenticadas, desde que possível a aferição de sua legitimidade por outro meio idôneo, podem ser validamente utilizadas em juízo penal (Rel. Min. Celso de Mello – RT 709/418).
7. Conclusão.
Conforme se destacou no transcurso deste trabalho, a inovação legal procurou ressaltar a importância da prova produzida em Juízo, sob o crivo dos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, da publicidade, etc. O legislador, assim, vedou ao Magistrado qualquer possibilidade de fundamentar sua decisão com base, exclusivamente, na prova produzida extrajudicialmente (com exceção das provas que, por sua própria natureza, não possam ser repetidas em Juízo). Com isso, além de privilegiar, de forma expressa, os princípios contidos na Constituição, acabou por encampar, no texto legal, entendimento jurisprudencial plasmado na mais alta Corte do país, que não conferia maior valor à prova obtida fora do processo judicial ([9]). Como bem acentua Antonio Scarance Fernandes, jurisprudência e doutrina, tendo a Constituição como norte, indicaram que “a condenação não podia estar lastreada nos elementos do inquérito, porque, se assim fosse, não estaria sendo observado o princípio constitucional do contraditório. Além do mais, como a defesa não participa, necessariamente, do inquérito, a condenação escorada em informes colhidos durante a investigação representa ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa”. ([10])
[1] J. Ribeiro de Daria, Provas, Ed. Polis, vol. IV, p. 1687.
[2] Curso de Processo Penal, vol. II, Ed. Verbo, p. 96.
[3] Ronaldo Batista Pinto, Prova Penal – doutrina e jurisprudência, p. 8.
[4] Luigi Ferrajoli trata, não sem razão, a verdade real como processual e esta, por sua vez, como verdade aproximativa. “A impossibilidade de formular um critério seguro de verdade das teses judiciais depende do fato de que a verdade ´certa´, ´objetiva´ ou ´absoluta´ representa sempre a ´a expressão de um ideal´ inalcançável” (Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal, Ed. Revista dos Tribunais, p. 42). Eugênio Pacceli, apesar de não enxergar inconveniente na expressão “verdade real”, observa: “Desde logo, porém, um necessário esclarecimento: toda a verdade judicial é sempre uma verdade processual. E não somente pelo fato de ser produzida no curso do processo, mas, sobretudo, por tratar-se de uma certeza de natureza exclusivamente jurídica. De fato, embora se utilizando de critérios diferentes para a comprovação dos fatos alegados em Juízo, a verdade (que interessa a qualquer processo, seja cível, seja penal) revelada na via judicial será sempre uma verdade reconstruída, dependente do maior ou menor grau de contribuição das partes, e por vezes do juiz, quanto à determinação de sua certeza” (Curso de Processo Penal, Ed. Del Rey, p. 281).
[5] Germano Marques Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, Ed. Verbo, p. 78.
[6] O juiz, longe de ser um observador de pedra – imóvel, estático -, conta com poder de iniciativa complementar de provas, nos termos do art. 156 do CPP. Segundo Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, na Justiça Penal, “o juiz não é mero espectador das provas produzidas pelas partes. Tem o dever de investigar a fundo a realidade do fato. Tão largo é o alcance desse princípio que até mesmo a confissão, no processo penal, tem valor relativo (art. 197) e deve ser valorada de acordo com as demais provas coligidas, enquanto, no processo civil, esse mesmo ato, quando não se cuidar de direitos indisponíveis, tem importância definitiva e absoluta (art. 341, § 1º, CPC), autorizando desde logo o julgamento da lide” (Curso de Processo Penal, Ed. Atlas, p. 28). Contudo, deve ser observado que o poder conferido ao juiz é o de (repita-se) complementar as provas, jamais tomando a dianteira na sua produção. Com fulcro nesse alerta, o STF declarou inconstitucional o art. 3° da Lei 9.034/95, que conferia ao magistrado poder total de investigação, extrapolando a intenção (permissão) do legislador processual (ADI 1570).
[7] Preceitua a Súmula 74 do STJ: “Para os efeitos penais, o reconhecimento da menoridade do réu requer prova por documento hábil”.
[8] Temos doutrina admitindo a prova da morte mediante a sentença declaratória de ausência (morte presumida).
[9] “Somente a prova penal produzida em juízo pelo órgão da acusação penal, sob a égide da garantia constitucional do contraditório, pode revestir-se de eficácia jurídica bastante para legitimar a prolação de um decreto condenatório. Os subsídios ministrados pelas investigações policiais, que são sempre unilaterais e inquisitivas – embora suficientes ao oferecimento da denúncia pelo Ministério Público -, não bastam, enquanto isoladamente considerados, para justificar a prolação, pelo Poder Judiciário, de um ato de condenação penal. É nula a condenação penal decretada com apoio em prova não produzida em juízo e com inobservância da garantia constitucional do contraditório” (STF – HC nº 73.338 – RJ – DJ de 19.12.96 – Rel. Celso de Mello).
“A unilateralidade das investigações desenvolvidas pela polícia judiciária na fase preliminar da persecução penal (informatio delicti) e o caráter inquisitivo que assinala a atuação da autoridade policial não autorizam, sob pena de grave ofensa a garantia constitucional do contraditório e da plenitude de defesa, a formulação de decisão condenatória cujo único suporte seja a prova, não reproduzida em juízo, consubstanciada nas peças do inquérito” (STF – RE nº 136239 – SP – DJ de 14.8.92, p. 12227 – Rel. Celso de Mello).
[10] Antonio Scarance Fernandes, Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal, p. 98.
Fonte: Atualidades do Direito, em 25 de agosto de 2011.
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