Luiz Flávio Gomes*
Não há desaprovação da conduta na “ação da vítima a próprio risco” (leia-se: quando a vítima auto-responsável se autocoloca em risco, praticando ela mesma a conduta perigosa): overdose em ação coletiva, em que a própria vítima é que exagera na sua dose e morre. Os outros participantes desse fato não respondem pela morte, mesmo porque ninguém desejava a morte de qualquer um dos integrantes do grupo. De se observar que esses participantes não respondem pelo fato porque a conduta perigosa (e lesiva) foi praticada pela própria vítima.
A autocolocação em perigo pressupõe ato da própria vítima, ou seja, é ela que pratica a conduta perigosa. Não há conduta perigosa gerada por um terceiro. O fato de esse terceiro estar junto com a vítima, por si só, não lhe pode gerar responsabilidade penal. Não é desaprovada (do ponto de vista do bem jurídico vida) a conduta de quem, coletivamente, está ingerindo substância entorpecente.
Desde que se trate de pessoas auto-responsáveis, cada um só responde pelo seu delito (posse ou porte de drogas). Mas nenhuma pessoa do grupo é responsável pela autocolocação da vítima auto-responsável em risco, que veio a falecer em razão de ato próprio.
A isso Roxin denomina “imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima”. Tem incidência, portanto, o princípio da autorresponsabilidade (da vítima).
Um outro exemplo: vítima que participa de um “racha” e, por sua inabilidade, vem a se acidentar e morrer. Aqui existe uma “ação a próprio risco” (ou seja: a vítima se autocoloca em risco diante da própria conduta). Os demais participantes do “racha” não devem responder pelo resultado morte (do companheiro), visto que foi a própria vítima que assumiu o risco e acabou morrendo em razão de conduta própria. Os participantes do “racha” só podem ser punidos pelo delito respectivo (CTB, art. 308).
Outro exemplo: da vítima, em Cuiabá, naquela festa de formatura, que se atirou por conta própria na piscina local, depois de ter ingerido bebida alcoólica (STJ, HC 46.525).
Diferente é a hipótese da “roleta russa”. A vítima se autocoloca em risco e acaba morrendo em razão da própria conduta (suicídio), mas todos que participaram do fato respondem por essa morte (induzimento ou instigação ou auxílio ao suicídio – CP, art. 122). O bem jurídico visado (ou em risco) na “roleta russa” é a vida. Todos têm ciência do risco para esse bem jurídico.
Na overdose ninguém quer a morte de qualquer integrante do grupo. No “racha” ninguém quer a morte de qualquer participante. Todos querem fazer uso de droga (e nada mais). Todos querem se emocionar com a “velocidade” (e nada mais). Ninguém, na overdose, induziu a vítima a se suicidar. Ninguém queria o suicídio. Na “roleta russa” o propósito de suicídio de um dos integrantes do grupo é inequívoco.
A teoria que acaba de ser exposta não pode ser aplicada no exemplo do atirador de facas no circo porque, nesse caso, é o atirador que gera o risco (ou seja: que pratica a conduta geradora de risco mortal). A vítima, nesse caso, expõe-se ao perigo, mas isso não basta.
A teoria em destaque só tem aplicação quando, além disso, é a própria vítima que pratica a conduta geradora do resultado. No exemplo da overdose foi a própria vítima que se excedeu (gerando sua própria morte). No caso do atirador de facas é ele o responsável pela conduta fatal. Logo, responde por essa morte.
E se o empregado se nega a usar o equipamento de proteção individual entregue pelo empregador, vindo a falecer? A negativa do empregado, nesse caso, não pode ter valor jurídico porque ninguém pode dispor do bem jurídico vida arbitrariamente. O consentimento da vítima, quando é o bem jurídico vida que está jogo, não pode conduzir a uma morte arbitrária.
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