Era assente o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal[1] de que o mero efeito devolutivo do Recurso Especial e/ou Extraordinário previsto no artigo 637 do Código de Processo Penal contra decisão condenatória não impediria a execução imediata da pena pelo simples esgotamento das vias ordinárias, sem que isso implicasse em ofensa ao princípio da presunção da inocência[2].
O recolhimento à prisão do réu condenado não configuraria constrangimento ilegal sendo, assim, possível o cumprimento do mandado de prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.
Para essa diretriz, bastava a decisão definitiva de condenação nas instâncias ordinárias, ainda que sem a preclusão temporal, ou pendente a apreciação de Recurso Extraordinário defensivo, para o recolhimento automático do réu. Não se discutia o eventual preenchimento dos requisitos do artigo 312, CPP, eis que a segregação era ex vi legis e com fundamento independente e diverso da utilidade e da necessidade que regem a prisão preventiva.
Contudo, a partir do julgamento da Reclamação 2391/PR, o Plenário do STF passou a reexaminar a constitucionalidade da exigência de prisão para que o condenado pudesse recorrer em liberdade[3]. Embora a referida reclamação tenha sido declarada prejudicada, por perda de objeto, o entendimento que estava a se firmar, pressupunha que eventual custódia cautelar, após a sentença condenatória e sem trânsito em julgado, somente poderia ser implementada se devidamente fundamentada, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal.
A matéria voltou a ser enfrentada no julgamento do Habeas Corpus 84078-7/MG, relatado pelo Ministro Eros Grau, afetado ao Pleno pela 1ª Turma que, por maioria[4], concedeu Habeas Corpus, nos seguintes termos:
“Ofende o princípio da não-culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no artigo 312 do CPP” [5].
Em seu voto-condutor, o ministro Eros Grau deduziu, em síntese, a seguinte argumentação:
(i) os preceitos veiculados pela Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal, artigos 105, 147 e 164), além de adequados à ordem constitucional vigente (artigo 5º, inciso LVII), sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no artigo 637 do CPP;
(ii) quanto à execução da pena privativa de liberdade, dever-se-ia aplicar o mesmo entendimento fixado, por ambas as Turmas[6], relativamente à pena restritiva de direitos, no sentido de não ser possível a execução da sentença sem que se dê o seu trânsito em julgado;
(iii) a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente poderia ser decretada a título cautelar;
(iv) a ampla defesa englobaria todas as fases processuais, razão por que a execução da sentença após o julgamento da apelação e antes do trânsito em julgado, implicaria, também, restrição do direito de defesa, com desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão;
(v) o modelo de execução penal consagrado na reforma penal de 1984 conferiria concreção ao denominado princípio da presunção de inocência;
(vi) a supressão do efeito suspensivo dos recursos extraordinário e especial seria expressiva de uma política criminal vigorosamente repressiva, instalada na instituição da prisão temporária pela Lei 7.960/1989 e, posteriormente, na edição da Lei 8.072/1990;
(vii) concluiu que, se a Corte, ao julgar o RE 482006/MG, prestigiara o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade, não o poderia negar quando se tratasse da garantia da liberdade[7].
Após o julgamento do HC 84078-7/MG, ambas as Turmas[8] do STF têm reafirmado[9] a decisão do Pleno adotada no citado Habes Corpus, tendo a ministra Carmem Lúcia votado no mesmo sentido da tese vencedora, ressalvando seu ponto de vista[10] e a ministra Ellen Gracie assentado que “não tendo prevalecido meu posicionamento, curvo-me ao entendimento da maioria”[11].
Assim, restou consolidada a nova[12] diretriz jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal pela impossibilidade de execução provisória da pena privativa de liberdade decorrente de sentença penal condenatória, quando interposto Recurso Extraordinário e/ou Especial, que são desprovidos de efeito suspensivo, ressalvada a decretação de prisão cautelar nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal[13], sob pena de se malferir o princípio da presunção da inocência.
Com isso, o Supremo Tribunal Federal conforma a validade da interpretação do artigo 637, CPP com o princípio constitucional da presunção de inocência e as bases democráticas do sistema jurídico nacional ao reafirmar a excepcionalidade da prisão cautelar, que somente deve ser decretada em situações de absoluta necessidade.
[1] “(...) é firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que o recolhimento à prisão do réu condenado pelo Tribunal estadual não configura constrangimento ilegal, ainda que interposto recurso extraordinário ou especial, que são desprovidos de efeito suspensivo. Precedentes: HC nº 72.102, Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, DJ 20.04.95 e HC nº 81.392, Rel. Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, DJ 01.03.2002; 3. Habeas Corpus indeferido”. STF, 1. T, HC 80939/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 13.09.2002, p. 00083.
“Habeas corpus. 2. Decisão condenatória. Determinação de imediata prisão do condenado. 3. Princípio da presunção de inocência. Art. 5º, LVII, da Constituição Federal. 4. Não possuindo os recursos de natureza extraordinária efeito suspensivo do julgado condenatório, não fere o princípio de presunção de inocência a determinação de expedição do mandado de prisão do condenado. Precedentes. 5. Habeas corpus indeferido”. STF, 2. T, HC 81685/SP, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.05.2002, p. 00073.
[2] No mesmo sentido: Superior Tribunal de Justiça, Súmula 267: “A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”.
[3] STF, 2. T, HC 84029/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 096 de 05.09.2007.
[4] Vencidos os Ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, que denegavam a ordem.
[5] Informativo STF nº 534, Brasília, 2 a 6 de fevereiro de 2009.
[6] “AÇÃO PENAL. Sentença condenatória. Pena privativa de liberdade. Substituição por pena restritiva de direito. Decisão impugnada mediante agravo de instrumento, pendente de julgamento. Execução provisória. Inadmissibilidade. Ilegalidade caracterizada. Ofensa ao art. 5º, LVII, da CF e ao art. 147 da LEP. HC deferido. Precedentes. Pena restritiva de direitos só pode ser executada após o trânsito em julgado da sentença que a impôs.” STF, 1. T, HC 88413, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 9/6/2006.
“HABEAS CORPUS. PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. EXECUÇÃO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. O artigo 147 da Lei de Execução Penal é claro ao condicionar a execução da pena restritiva de direitos ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Precedentes. Ordem concedida.” STF, 2. T, HC 86498, Rel. Min. Eros Grau, DJ 19/5/2006.
[7] “Decidiu-se então, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- ´a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição´. Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988. Afirmação unânime, como se vê, da impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade, anteriormente ao seu trânsito em julgado, a decisão com caráter de sanção. Ora, a Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade certamente não o negará quando se trate da garantia da liberdade. Não poderá ser senão assim, salvo a hipótese de entender-se que a Constituição está plenamente a serviço da defesa da propriedade, mas nem tanto da liberdade... Afinal de contas a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas”. Trecho do voto do Min. Eros Grau (HC 8078-4/MG).
[8] Primeira Turma: HC 96186/AC, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 079 de 29.04.2009. A Turma deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime; HC 97523/SP, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 162 de 27.08.2009. Ordem concedida. Decisão unânime, ausente, justificadamente, o Ministro Menezes Direito. O Min. Dias Toffoli, que passou a integrar a 1ª Turma do STF após o julgamento do Habeas Corpus nº 84078-7/MG, acompanhou a maioria formada no citado HC e aplicou a tese de que só se deve ser recolhido à prisão por ocasião do trânsito em julgado da sentença penal condenatória ao conceder a ordem no RHC 104723/SP (1. T, DJe-035, de 21.02.2011), do qual foi o relator. Segunda Turma: HC 96059/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 064 de 02.04.2009. Decisão unânime, ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen Gracie; HC 94408/MG, Rel. Min. Eros Grau, DJe 059 de 26.03.2009. A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie.
[9] Em que pese o enunciado de sua Súmula 267/STJ, a 5ª Turma do referido Tribunal também passou a entender que: “Viola o princípio da presunção de inocência a expedição de mandado de prisão pelo simples esgotamento das vias ordinárias, pois o Supremo Tribunal Federal, haja vista interpretação decorrente do inciso LVII do art. 5º da Constituição da República, decidiu pela inconstitucionalidade da execução provisória da pena, baseada no mero efeito devolutivo do recurso especial previsto no art. 637 do CPP”. HC 104352/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 15/06/2009.
[10] 1. T, HC 97143/SP, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 157 de 20.08.2009. Pedido de habeas corpus deferido, nos termos do voto do Relator, com ressalva do ponto de vista da Ministra Cármen Lúcia. Unânime. Ausente, justificadamente, o Ministro Menezes Direito.
[11] 2.T, HC 98166/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 113 de 18.06.2009. A Turma, à unanimidade, deferiu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Relatora. Ausente, justificadamente, o Ministro Joaquim Barbosa.
[12] “O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a execução provisória da pena, ausente a justificativa da segregação cautelar, fere o princípio da presunção de inocência”. STF, 1. T, HC 99717/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe-226, de 24.11.2010.
[13] STF, 1. T, HC 96029/RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 089 de 14.05.2009 (decisão unânime).
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