Paulo Sérgio de Oliveira
A aplicação da lei 12.403/11 durante a vacatio legis. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 223, p. 14, jun., 2011.
“Mudança de paradigmas!” Essa é a frase mais utilizada pelos juristas ao comentarem as alterações introduzidas pela Lei 12.403/11 no Código de Processo Penal. Não que não tenham razão, ao contrário, há que se mudar o modo de pensar o processo penal, em especial no que diz respeito às prisões processuais! Porém, esta novidade vem tarde, pois já deveria ter ocorrido em 1988 com o advento da atual Constituição Federal da República.
Isto porque não há como se sustentar um Código de Processo Penal de 1941, com todas as facetas peculiares à época de sua origem, frente a uma Constituição moderna, preocupada com os direitos e garantias individuais como a nossa, mesmo tendo havido, nos últimos anos, uma série de alterações(1) pontuais no CPP, que acabaram por transformá-lo em uma verdadeira colcha de retalhos. Evidentemente, apesar de merecidas críticas em alguns pontos, de uma forma geral, todas essas alterações trouxeram aspectos verdadeiramente positivos, porque ao menos serviram para adequá-lo um pouco à Constituição Federal. Por incrível que pareça, muitos profissionais que atuam na seara do processo penal ainda relutam em analisar leis infraconstitucionais pelo prisma da nossa Lei Maior, o que gera a inequívoca necessidade de alteração da lei ordinária (CPP) para que “acreditem”(2) no texto constitucional. Foi o que aconteceu com a antiga questão da necessidade do réu estar acompanhado por seu defensor no interrogatório judicial,(3) depois com o sistema de inquirição de testemunhas diretamente pelas partes e, agora, com a Lei 12.403/11, no que se refere à utilização da prisão processual como ultima ratio.
Esta novel Lei, embora não isenta de algumas críticas, traz novidades merecedoras de muitos elogios. O simples fato de trazer alternativas à prisão cautelar, por si só, já bastaria para termos razões de comemoração às novas alterações trazidas ao nosso Código Processual Penal.
Parafraseando Amilton Bueno de Carvalho, entendemos que o juiz deve sempre partir do pressuposto de que, a princípio, nenhuma restrição à liberdade do indiciado/acusado deverá ser aplicada. Excepcionalmente, por motivo absolutamente relevante é que o juiz deverá impor alguma medida, porém, alternativa à prisão. Se esta medida, após a análise criteriosa de razoabilidade/proporcionalidade/eficácia/necessidade, não se mostrar suficiente para o caso em concreto, poderá o magistrado cumular mais de uma medida cautelar do art. 319 do CPP alterado. Superada esta análise, e verificada insuficiente esta medida, bem como se não houve outra possibilidade para o caso concreto, ou seja, sendo absolutamente necessária a segregação, somente aí estaria o juiz autorizado a decretar a prisão preventiva do agente, o que deve ser feito mediante concisa e inequivocada fundamentação.
Por não comportar este despretensioso artigo uma análise extensa da recém-chegada legislação, pretendemos expor apenas a respeito da questão relativa à sua vacatio legis. Em seu art. 3º está disposto: “Esta Lei entra em vigor 60 (sessenta) dias após a data de sua publicação oficial”.
Em que pese a existência de respeitosas posições contrárias, defendemos a aplicação imediata desta lei, por ser mais benéfica ao réu (v.g., para os indiciados/acusados que se encontram presos provisoriamente, entendemos que deveria haver uma reavaliação imediata destas prisões, e, se for o caso, as mesmas deveriam ser substituídas pelas alternativas elencadas na nova redação do art. 319 do Código de Processo Penal).
Alberto Silva Franco,(4) com sua peculiar maestria, leciona: “Como todo e qualquer princípio constitucional, a retroatividade penal benéfica não tem efeito meramente proclamatório nem é regra de conotação programática: é imperativa, porque dotada de caráter jurídico-positivo”. Referido caráter confere pronta eficácia à norma. O mesmo doutrinador, ao analisar a hipótese de vacatio legis, conclui que, quando o legislador prefixa um prazo futuro para a entrada em vigor da nova lei, tal regra não seria compatível com o princípio da retroatividade penal benéfica.
Os fundamentos apresentados por Silva Franco parecem-nos simples e cheios de razão, daí porque nos filiamos a esta tese. Ensina este doutrinador(5) que “a vacatio legis é estabelecida para favorecer as pessoas. Instituto desta natureza não pode ocasionar efeito oposto, ou seja, gerar prejuízo, aumentar ônus. Além disso, substancialmente, representa nova tomada de posição da lei sobre um instituto. Integram-se perfeitamente à filosofia da retroatividade benéfica”. Acompanham este entendimento, entre outros, Paulo José da Costa, Luiz Vicente Cernicchiaro e Cezar Roberto Bitencourt.
É certo que as lições acima apresentadas foram defendidas pelos doutrinadores nominados no que concerne à norma penal (direito material). Porém, ainda que a novel lei trate exclusivamente de norma processual penal, é inegável que, por tratar de liberdade e prisão, trazendo em especial, “medidas alternativas à prisão processual”, há que se dar àquela igual tratamento dispensado à legislação penal.
O professor Cezar Roberto Bitencourt(6) assim ensina: “Toda lei penal, seja de natureza processual, seja de natureza material, que, de alguma forma, amplie as garantias de liberdade do indivíduo, reduza as proibições e, por extensão, as conseqüências negativas do crime, seja ampliando o campo da licitude penal, seja abolindo tipos penais, seja refletindo nas excludentes de criminalidade ou mesmo nas dirimentes de culpabilidade, é considerada lei mais benigna, digna de receber, quando for o caso, os atributos da retroatividade e da própria ultratividade penal”.
Destarte, como afirmado alhures, em que pese tratar a Lei n. 12.403/11 de alterações no Código de Processo Penal, parte destas modificações legislativas carregam um inafastável caráter penal. Em especial, as novas redações dos arts. 282, 310, 313 e 319, dentre outras, merecem a compreensão de que carregam em si limitações à liberdade do indivíduo, determinando, por sua vez, alterações de garantias e direitos fundamentais, motivo pelo qual o tratamento dado a esta norma há que ser o mesmo dispensado à norma de direito material.
Partindo deste pressuposto, e alicerçados pelos ensinamentos doutrinários apontados, concluímos que, desde a publicação da nova lei, os magistrados têm o dever de reavaliar os fundamentos que determinaram o decreto prisional processual de todos os presos provisórios e, em sendo possível, deverão substituir as prisões por outras medidas cautelares trazidas pela nova legislação.
Lembramos, por fim, que, em que pese a Constituição Federal da República consagrar ser a prisão processual exceção, finalmente nossa lei processual penal, agora com a nova redação do art. 282, em seu § 6º, dispôs “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”. Realmente, em âmbito infraconstitucional, temos agora (e somente agora?) uma mudança de paradigma.
NOTAS
(1) V.g,Leis ns. 10.792/03, 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08.
(2) Usamos esta expressão, pois lembramos aqui da fala do saudosoJames Tubenchlak ao proferir uma palestra no Hotel Gloria na cidade do Rio de Janeiro, promovida pelo Instituto de Direito no ano de 1999, em que ele comparou os operadores do direito que lêem o texto constitucional a partir das leis ordinárias (quando deveria ocorrer o inverso) com os torcedores de futebol que vão ao estádio com radinho de pilha. Dizia ele que a estes torcedores não bastava assistir o jogo no campo, eles necessitavam que alguém lhes falasse o que estava ocorrendo lá.
(3) A 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já anulava sistematicamente os processos nos quais os interrogatórios tinham ocorrido sem a presença de um defensor, muito antes do surgimento da Lei n. 10.792/03.
(4) FRANCO, Alberto Silva; STOCCO, Rui (coords.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1, p. 62 e ss.
(5) Op. cit.
(6) BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1, p. 207 e ss.
Paulo Sérgio de Oliveira
Advogado criminalista.
Mestre em Direito pela Universidade de Franca.
Professor de Direito Processual Penal na Escola Paulista de Direito.
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